#Literatura: a incontinência do bode(3)
Como Vargas Llosa escolheu os fatos ou criou ficção para contar a história do seu livro "A festa do bode" da forma mais verdadeira possível
Parte 3
Em uma sexta-feira à tarde de 1963, quando eu tinha 8 anos, enquanto assistia um desenho dos Jetsons na nossa TV, que ficava no quarto dos meus pais, ouvi meu pai subindo as escadas muito rápido, de 3 em 3 degraus, como fazia quando tinha muita pressa (sempre). Mas no meio da tarde, com o consultório cheio? Era um sobrado, os consultórios de meus pais eram no térreo, morávamos em cima. Entendi que havia alguma urgência. Ele entrou correndo no quarto, direto ao criado-mudo (expressão traduzida literalmente do inglês “dumb-waiter”, o pequeno elevador doméstico que se usava para transportar talheres e grandes travessas, e não a fantasia identitária de que se referia a um escravo que ficaria mudo ao lado da cama do amo durante a noite) onde ficava o rádio de onda curta, e enquanto girava rápido o dial para lá e para cá procurando alguma estação, disse de um fôlego só, Kennedy foi assassinado! Eu sabia quem era, o resto aprendi depois. Aquele 22 de novembro está bem vivo na minha memória, muito mais por ver meu pai tão transtornado, de resto tão equilibrado.
Na primeira aula de uma terça-feira em 2001 eu saboreava a alegria da descoberta de meus alunos, 12 pessoas que viam DNA pela primeira vez, extraído por eles mesmos de uma cebola, seguindo minhas instruções. Todos os olhos estavam voltados àquele líquido translúcido, viscoso, que continha - eles sabiam - todos os segredos da vida (da cebola). Entra esbaforido José Renato, meu assistente - o mais educado, o mais contido assistente que já existiu - quase aos gritos, explodiram a torre, explodiram a torre!, enquanto ligava a TV, usada só para filmes científicos. Quando surgiu a imagem, a Torre Norte do World Trade Center já estava em chamas, os repórteres se atropelavam entre locuções em português e inglês, todos horrorizados com o acidente que acabara de acontecer. E eis que o segundo avião dirige-se à Torre Sul e o resto, todos nós sabemos. De tanto horror que há que ser lembrado, o momento divisor de águas é o segundo impacto: a perda da inocência, a clareza de que não era um acidente e sim um atentado, calculado, financiado, preparado ao longo de anos, para assassinar o maior número de pessoas possível diante dos olhos do mundo. E o 11 de setembro passou a ocupar um espaço da alma do mundo. Pena que parece que esse pedaço já foi vendido, até em troca de um trecho de praia na Austrália.
E aí veio o 7 de outubro. Mas esse, eu jamais encerraria em um parágrafo.


