#Literatura: a linguagem como ferramenta de poder
George Orwell permanece como uma das consciências mais afiadas do século XX, não por ter previsto o futuro, mas por ter descrito com precisão cirúrgica os mecanismos eternos da manipulação política
A vida de George Orwell foi marcada por contrastes violentos. Na infância pobre entre ricos, a experiência imperial na Birmânia, a miséria voluntária em Londres e Paris e a descoberta brutal do totalitarismo na Guerra Civil Espanhola. Essas experiências acabaram moldando um escritor incapaz de aceitar ilusões ideológicas. Orwell não escrevia para agradar militâncias; escrevia para refutar mentiras.
A linguagem, para ele, era sempre o primeiro campo de batalha. Em Politics and the English Language, denunciou o uso de frases pomposas, jargões e abstrações como ferramentas para esconder a realidade, ao invés de revelá-la. Esse diagnóstico, que na época parecia um purismo estilístico, hoje soa como profecia: governos, corporações e movimentos políticos aprenderam a dominar a “linguagem ambígua”, capaz de transformar censura em “segurança”, inflação em “reajuste técnico” e fracassos em “experiências alternativas”. Orwell entendeu antes de todos que perverter as palavras é o primeiro passo para perverter as pessoas.
Essa obsessão aparece com força em A revolução dos bichos, sátira brilhante da utopia que, traída, degenera em tirania. Orwell não ataca a ideia de justiça social, mas os líderes que falam em nome dela enquanto reproduzem o cinismo e os privilégios que juraram destruir. A manipulação dos mandamentos da granja — revisados conforme a conveniência dos porcos — é uma lição permanente sobre como regimes autoritários reescrevem a memória coletiva, sempre com slogans patrióticos, discursos inflamados e uma multidão disposta a acreditar.
Em 1984, essa lógica atinge o paroxismo: o Estado total controla a linguagem (novilíngua), a memória (Ministério da Verdade), a vigilância (Big Brother) e até as emoções (crime de pensar). Orwell cria uma distopia que, longe de ser datada, tornou-se referência para analisar tecnologias de rastreamento, manipulação algorítmica e a cultura contemporânea da vigilância “voluntária”. Plataformas digitais que monitoram comportamentos, governos que tratam discordância como ameaça e campanhas que transformam mentira em fato viral revelam que o futuro de Orwell não foi profecia, foi diagnóstico.
O legado de Orwell, no entanto, não é apenas literário: é ético. Ele acreditava que a honestidade intelectual era uma forma de resistência — e que a verdade nunca deveria ser um refém de partidos políticos. Sua atualidade vem justamente daí: num mundo saturado de propaganda, tribos políticas, slogans vazios e certezas prontas, Orwell lembra que a liberdade depende de algo simples, mas raro: a coragem de olhar para os fatos sem intermediários. E, como ele próprio escreveu, “restou apenas a tarefa de dizer o óbvio”. Hoje, mais do que nunca, isso continua sendo um ato profundamente subversivo.
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A revolução dos bichos (link da Amazon)
George Orwell
Companhia das Letras, 2007
152 páginas
1984 (link da Amazon)
George Orwell
Penguin-Companhia, 2020
392 páginas






Ótimo ensaio sobre um dos meus favoritos. Obrigada!
"...a verdade nunca deveria ser um refém de partidos políticos": excelente observação. O parágrafo final me lembrou uma frase do Voltaire: "O segredo de aborrecer é dizer tudo".
Recentemente saiu um documentário sobre George Orwell, "Orwell 2+2=5". O trailer: https://www.youtube.com/watch?v=SQ8l6HSCWBw