#Literatura: O descobridor da alma moderna
Em Petrarca, o amor deixa de ser alegoria e torna-se experiência humana, concreta, verdadeira e quase biográfica
Francesco Petrarca ocupa um lugar singular na literatura italiana porque soube transformar sua própria interioridade em matéria poética universal. Embora tenha aspirado à glória clássica ao escrever em latim e ao conceber obras ambiciosas como África (sem edição no Brasil), foi no íntimo de seus sonetos italianos que encontrou a imortalidade. Sua sensibilidade, dividida entre o desejo de grandeza e a consciência dolorosa do tempo, deu origem a um modo novo de falar do eu, diferente dos modelos medievais e profundamente moderno em sua franqueza emocional.
No Canzoniere, conjunto de poemas dedicados a Laura, o amor deixa de ser alegoria e torna-se experiência humana, concreta, verdadeira e quase biográfica. Ao contrário de Dante, que exalta Beatriz em símbolo teológico, Petrarca aceita o amor como acidente da vida, como algo que não se transfigura em doutrina, mas permanece sentimento: insuficiente, contraditório, irresistível. Laura não é apenas musa; é presença e ausência, luz e ferida, memória e fantasia. Ao mesmo tempo, o livro revela mais sobre Petrarca do que sobre ela: a verdadeira personagem central é a alma inquieta do poeta.
O Canzoniere está fora de catálogo no Brasil. Nosso mercado editorial, composto por ghostwriters e autores de mentira, não dá muita importância ao pai do humanismo e da lírica moderna. Mas pelo menos temos uma pequena amostra de 84 sonetos de Petrarca dedicados a Laura, na compilação de Sérgio de Queiroz Duarte, Na Terra e no Céu.
Por mais paradoxal que seja, os sonetos de Petrarca têm a capacidade de transformar o particular em universal. Os jogos sonoros em torno do nome de Laura — “l’aura”, “oro”, “aurora”, “l’ora” — constroem uma rede simbólica que liga a mulher, o tempo e o desejo, e convertem um nome próprio em instrumento de reflexão sobre a condição humana. A intimidade quase confessional dos poemas cria um espaço no qual qualquer leitor pode reconhecer seus próprios impasses: a nostalgia que não passa, a esperança que vacila, o arrependimento que retorna. E a Laura de Petrarca vira um arquétipo de todas os amores de nossas próprias vidas.
Outra contribuição decisiva de Petrarca é a forma estrutural do livro. O Canzoniere funciona como um “romance lírico”: cada poema é autônomo, mas todos compõem a narrativa fragmentada de um sujeito que se constrói enquanto escreve. Não há teleologia, não há doutrina final — há apenas o movimento interno da consciência, presa entre desejo e renúncia, lume e sombra. Essa arquitetura, inovadora para a época, inaugura uma maneira nova de falar de si mesmo: não como exemplo, mas como experiência.
O legado de Petrarca, portanto, é a legitimação da singularidade. Ao transformar as próprias contradições em poesia, ele mostrou que a interioridade — com sua desordem, suas pequenas vaidades e seus grandes sofrimentos — pode ser matéria estética e também filosófica. Sua influência atravessou séculos, moldando a lírica europeia e instaurando uma tradição que ainda hoje sentimos: a de que o íntimo, quando dito com a força da verdade, comove e inspira a todos.
Petrarca não é apenas o pai do humanismo, mas o descobridor da alma moderna.
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Na Terra e no Céu
Francesco Petrarca
Penguin-Cia das Letras, 2023.
208 páginas




Gostei!
…” o amor como acidente da vida…”
Quase sempre , atropela 😂🤕