#Literatura: Pirandelo, o filho do caos
O escritor siciliano, Nobel de Literatura de 1934, continua sendo o autor que melhor revela a crise existencial do nosso tempo
Luigi Pirandello permanece como um dos autores mais inquietantes e necessários da literatura moderna. Siciliano de Cavùsu — um lugar que ele próprio chamava, com ironia, de “Caos” — trouxe para a literatura uma visão marcada pela contradição, pela ambiguidade e pela percepção de que a realidade raramente se apresenta de maneira estável. Sua obra nasce desse terreno movediço: um mundo onde as certezas se desfazem, a identidade se fragmenta e o indivíduo, desamparado, tenta dar forma a si mesmo em meio à instabilidade do século XX.
A força de Pirandello está também na diversidade de sua produção. Ele escreveu novelas até seus últimos dias, romances decisivos e ensaios que moldam sua teoria literária; mas foi no teatro que encontrou a expressão mais radical de sua visão de mundo. Desde “Novelle per un anno” (sem edição no Brasil, infelizmente) até seus textos críticos, Pirandello construiu uma espécie de laboratório permanente da condição humana, sempre atento às rachaduras entre aquilo que mostramos e aquilo que somos. Sua literatura não consola, interroga.
Em seu ensaio O Humorismo, publicado no Brasil numa excelente edição organizada por Jacob Guinsburg, Pirandello: do teatro no teatro, o novelista e dramaturgo italiano define a emoção que governa toda a sua obra: a “sensação do contrário”. Não se trata de simples comicidade, mas da percepção súbita de que, por baixo da superfície risível, existe uma dor, uma falha, uma vergonha, uma verdade incômoda. O humorismo é esse choque entre aparência e essência, entre forma fixa e vida em ebulição. É o momento em que a máscara começa a rachar e revela que o indivíduo moderno vive repartido: uma face pública rígida e uma interioridade instável, contraditória, muitas vezes inconciliável.
No teatro, Pirandello transformou essa filosofia em experimento radical. Em “Seis personagens à procura de um autor”, talvez sua obra mais célebre – e que faz parte da primorosa edição de Jacob Guinsburg –, ele rompe com a fronteira entre realidade e ficção, fazendo personagens abandonados invadirem o palco em busca de existência. Ali, o espetáculo deixa de ser entretenimento e se torna um confronto: quem define a verdade? Quem nos entrega uma identidade? Nós mesmos, a sociedade, ou algum autor invisível? O teatro de Pirandello desmonta ilusões, implode a quarta parede e joga no colo do público, não respostas, mas perguntas.
Mais de um século depois, Pirandello ainda nos constrange, e por isso permanece atual. Vivemos cercados por máscaras, identidades performáticas, versões de nós mesmos que nem sempre coincidem – ilustrado no seu último romance Um, nenhum e cem mil, na crise de identidade vivida pelo protagonista, Vitangelo Moscarda, perturbado com uma observação banal, mas desconcertante da sua esposa.
A crise que Pirandello diagnosticou não cessou, apenas mudou de cenário. Sua literatura nos lembra que, em tempos de incerteza, a busca por coerência pode ser uma ilusão, mas a consciência dessas fissuras é um passo essencial para compreender a complexidade humana.
Pirandello continua sendo esse espelho desconfortável — e imprescindível — em que a modernidade, estupefata, se vê fragmentada.
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Pirandello: do teatro no teatro (link da Amazon)
Jacob Guinsburg (org.)
Perspectiva, 2009
408 páginas
Um, nenhum e cem mil (link da Amazon)
Tradução e Maurício Santana Dias
Penguin-Companhia, 2023
240 páginas



