#Literatura: Stendhal – o romântico lúcido
Por trás da imagem de cético desbocado e espírito desinibido, escondia-se um homem dotado de uma sensibilidade quase escandalosa
Stendhal é um desses escritores cuja personalidade escapa a qualquer definição simples. Por trás da imagem de cético desbocado e espírito desinibido, escondia-se um homem dotado de uma sensibilidade quase escandalosa — uma febre romântica pela vida, pelo amor, pela glória, e sobretudo pela felicidade. Mas essa sensibilidade, tão viva, tão pronta a florescer, era contida pelo seu medo mais íntimo: o medo de ser enganado, ou pior, de parecer ridículo.
Seu instinto crítico estava sempre alerta contra qualquer sinal de superficialidade, falsidade ou afetação. Paradoxalmente, aquilo que condenava — a dissimulação, os jogos sociais, as máscaras — acabava por fasciná-lo. Para Stendhal, esses artifícios não eram apenas vícios do mundo: eram ferramentas, artes sutis da sobrevivência.
Em O vermelho e o negro, sua obra-prima narrativa, Stendhal leva esse conflito ao limite. Seu protagonista, Julien Sorel, encarna a ambição feroz e a sensibilidade reprimida que o próprio autor atribuía ao mundo moderno. Entre o vermelho da glória militar e o negro da carreira clerical, o jovem protagonista tenta ascender numa sociedade hipócrita, onde dissimulação e oportunismo são leis não escritas. A grandeza do romance está em mostrar como o desejo — amoroso, social, político — é sempre atravessado por cálculo e medo, revelando um universo moral tenso e fragmentado.
Sua ironia nasce exatamente dessa tensão. Não é um gesto de descrença melancólica, mas um mecanismo de precisão moral: demarca o que é autêntico, separa o vigor da vida do sentimentalismo banal. Stendhal não gostava dos exageros líricos nem das convenções românticas; sua busca era por um romantismo que se mantivesse fiel ao real, às paixões concretas, às ambições palpáveis, à força imediata do desejo. Ele queria captar a energia humana sem idealizá-la demais.
No centro dessa visão está o que o artigo chama de “culto do Eu”. Stendhal acredita que a existência é uma longa perseguição à felicidade — e não à felicidade dos outros, mas à sua própria. Seu individualismo não é um capricho moderno, mas uma ética: a afirmação da personalidade diante de um mundo feito de convenções e ilusões. Seus personagens, por isso, se movem entre extremos — são passionais e calculistas, sensíveis e estratégicos, capazes de ternura profunda e de dissimulação habilidosa. Para eles, como para o próprio Stendhal, a máscara não é um defeito moral: é uma defesa vital em um ambiente onde todos, cedo ou tarde, se tornam predadores ou presas.
Sua escrita reflete esse espírito complexo. Stendhal circula entre correntes literárias — romantismo, pré-romantismo, realismo — sem se deixar aprisionar por nenhuma. Rejeita os exageros sentimentais e o lirismo inflado, preferindo uma prosa limpa, irônica, atravessada por uma lucidez cortante. Ele oferece ao leitor um mundo sem véus: um palco onde o desejo nunca é puro, a ambição nunca é inocente, e os sentimentos nunca são tão simples quanto parecem.
Essa tensão se revela em Sobre o amor, seu ensaio mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais analítico. Ali, Stendhal descreve o amor como um processo de “cristalização”: a imaginação reveste o objeto amado com brilhos inexistentes, transformando defeitos em encantos. É uma teoria que combina lirismo e matemática emocional, mostrando como ele era capaz de dissecar a paixão sem matar seu mistério. O ensaio expõe seu paradoxo central: compreender o amor a fundo sem renunciar à vertigem de senti-lo.
Stendhal, portanto, é um romântico com horror ao melodrama. Um sensível que teme a sensibilidade; um autor que sonha com a felicidade, mas conhece demais os mecanismos da ilusão para se deixar enganar por ela. Sua grandeza nasce desse conflito íntimo — dessa convivência entre o impulso lírico e o olhar clínico.
Em Stendhal, a vida é uma aventura emocional governada por estratégia; um campo de batalha onde a lucidez não anula o desejo, mas o aprimora.
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O vermelho e o negro
Penguin-Companhia, 2018
648 páginas
Sobre o amor
Penguin-Companhia, 2025
160 páginas






Obrigado por esta apresentação de Stendhal. Mais livros para a pilha de leituras.
🏆👏🏻 Gostei!