#MetáforasPurificadoras
Quando o imaginário social alimenta a convicção de que há um corpo doente que só pode ser salvo pelo expurgo
“Cânceres, quem diria, crescem rápido quando usam os nervos ao mesmo tempo como microfones e autofalantes, num efeito de microfonia fadado à catástrofe. Para erradicar um câncer é preciso tirar-lhe a voz. Está sendo uma boa semana para isso...”
Retirei esse trecho do último parágrafo de um artigo de Suzana Herculano-Houzel, bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt, publicado na Folha: Cânceres deixam de crescer quando perdem a voz. O detalhe é que o texto foi publicado no dia 11 de setembro, simbolicamente um dia depois do assassinato de Charlie Kirk.
O artigo é interessante. Nele, a autora descreve a descoberta científica de como nervos sensoriais alimentam o crescimento tumoral. No plano científico, é metáfora para traduzir o dado de um processo natural: nervos funcionando como microfones e autofalantes, tumores que ganham “voz” e precisam ser silenciados. Até aí, tudo aparentemente bem.
No entanto, a frase final — “Está sendo uma boa semana para isso...” — insinua, como todo símbolo, uma ressonância que escapa ao dado técnico e toca o imaginário comum, algo para além da biologia. Não sei, nem alego, que a autora tenha tido essa intenção deliberada; deixo isso em aberto. Meu ponto é outro: quando o câncer é narrado como voz e a cura como silenciamento, a metáfora médica — Para erradicar um câncer é preciso tirar-lhe a voz — atravessa para o campo político, independentemente da intenção de quem escreveu.
O sociólogo francês Jacques Sémelin mostrou em seu impactante livro Purificar e Destruir o risco desse pequeno “deslizamento”. O que acontece quando inimigos passam a ser descritos como infecção, verme, tumor? Na política dos genocídios — é disso que trata seu livro — o próximo passo é o mais decisivo: colar no outro a imagem da “patologia social”.
Sémelin estudou comparativamente os grandes massacres do século 20: da Shoah ao genocídio em Ruanda, das limpezas étnicas na ex-Iugoslávia ao massacre dos armênios. O fio condutor é a análise de como sociedades aparentemente normais, em contextos de crise, passam a descrever parte de seus membros como “corpos estranhos”. Ou seja, antes de ser atacado, o outro é transformado em metáfora biológica de ameaça vital. O discurso médico-higienista se converte em discurso político para legitimar a eliminação.
O autor mostra que essa transposição simbólica não é detalhe retórico. Trata-se, na verdade, da etapa central da violência em massa. A desumanização ocorre quando a linguagem passa a trabalhar sobre o imaginário coletivo e se instalar na convicção de que matar não é assassinar. Muito pelo contrário, é proteger a saúde do corpo social. Nesse sentido, genocídios são operações sanitárias.
Em Purificar e Destruir, Sémelin insiste que não basta explicar massacres pela irracionalidade das massas ou pelo cálculo frio de elites. O processo é mais complexo: envolve medo coletivo, ressentimentos históricos, mitos de origem e promessas de regeneração. O massacre é, ao mesmo tempo, expressão de pânico e projeto de poder. O imaginário social alimenta a convicção de que há um corpo doente que só pode ser salvo pelo expurgo.
Hoje, tenho algumas preocupações acerca de como essa mesma lógica volte a se insinuar, ainda que em versões atenuadas e fora de políticas de Estado.
Uma sociedade hipersensibilizada acredita piamente que palavras ferem como armas. Não há encenação de vitimismo: há convicção interior de ferida. Nesse ambiente mental, a vida subjetiva já não consegue distinguir crítica de agressão, discurso de violência, discordância de humilhação. Ou seja, na incapacidade de a psique dialogar consigo mesma e de suportar os fantasmas do desejo imediato, desaprendemos a enfrentar a adversidade existencial do outro.
É nesse ponto que a liberdade interior — fundamento invisível da democracia — começa a se perder. A experiência democrática não se sustenta apenas em instituições formais, mas na disciplina íntima de uma consciência que aprende a ouvir a si mesma antes de confrontar o mundo e o outro. Embora um crítico da democracia ateniense, Platão intuía isso ao dizer que a cidade justa depende da alma ordenada (em resumo, capaz de ordenar as paixões). Quando esse diálogo interior se rompe, a política deixa de ser encontro de razões e passa a ser choque de sensibilidades.
É nesse vazio que metáforas purificadoras encontram solo fértil. Quando o outro já não pode ser enfrentado como interlocutor, passa a ser descrito como corpo estranho, tecido enfermo, tumor social. A metáfora médica entra sorrateira, com a promessa de profilaxia. O adversário não é mais voz a ser escutada, mas ruído a ser silenciado. Em outras palavras, a dificuldade em suportar a dissonância interior abre caminho para justificar o expurgo exterior.
Pode ser que esse ambiente simbólico — onde o discurso, a metáfora e o medo se entrelaçam — tenha criado uma sobreposição entre o inimigo e o doente. Intoxicado de metáforas libertadoras, talvez o jovem que disparou contra Charlie Kirk tenha visto nele não só um opositor político, mas algo que, na sua vida interior, parecia ameaçador, visceral — um sintoma e não uma pessoa. Ele acredita, sem muito raciocínio consciente, que estava defendendo algo.
Kirk, ou qualquer pessoa nessa posição de debate, sentado tranquilamente numa tenda montada no espaço universitário, talvez não previsse que sua voz pudesse funcionar como catalisador de medos tão intensos.
Essa tragédia revela que, quando aceitámos de bom grado que essas metáforas purificadoras dominem o nosso imaginário — ou seja, quando deixamos de cultivar a liberdade interior que é vigilante no diálogo consigo própria —, criamos condições para que o ordinário conflito verbal se revele como expressão de violência.
Agora, é preciso perguntar, não para diminuir o sofrimento de quem sofreu, mas para compreender a nós mesmos como possíveis agentes de injustiças: como chegamos a crer que matar poderia ser cura? E o que nos ensinará essa ferida que não deveria pedir vingança, mas vigilância interior?
Não precisava de toda essa explicação. O artigo foi intencional.
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