#naoeentrevista: Francisco Razzo
Um palmeirense filósofo que pensa com a própria cabeça.
Olá, Razzo. Como você está?
Deprimido pelo empate entre Palmeiras e Corinthians no final de semana [ocorrido há quinze dias]. É 2x2 imerecido para o alvinegro. Veio com sabor de derrota. Falaram até em “empate heroico”. A situação do Corinthians tá tão feia que até empate é chamado de heroico. Palmeiras dominou o jogo até 80 minutos do segundo tempo. Depois, apagou. Algumas falhas pessoais dos jogadores... Bom, deixa pra lá. Acho que não é este o assunto da entrevista. Se bem que isso não é uma entrevista. Então, vamos lá.
Por acaso a sua infância foi deliciosamente corrompida por Walt Disney?
“Deliciosamente” é uma expressão perigosa para o que o Walt Disney pode fazer com a cabeça de uma criança. Mas sim, fui corrompido. A propósito, quando nasci, em 1978, ganhei um calendário da Branca de Neve e os Sete Anões. Tenho até hoje, ele está emoldurado. Não tirem sarro. Mas sinceramente? Nunca gostei das produções da Disney. Só tem um filme que sempre revisito, aquele do Pateta que fica doidão no trânsito, tipo o Felipe Neto no Twitter. Ele trata a vida de um típico homem comum corrompido pelo automóvel. Todos nós fomos corrompidos pelas máquinas. Profético.
Quais são as memórias que você tem da sua infância? E, por favor, não se esqueça das empregadas.
De umas revistinhas bem sacanas que achei em cima do guarda-roupa do meu pai. Quando digo “sacanas” não me refiro a Maitê Proença na Playboy. Tô falando daquelas que as bancas de jornais nos anos 80 escondiam em prateleiras bem longe dos olhos do público. Prateleiras que depois foram transformadas em Dark Web. Meu pai faleceu de câncer e eu nunca contei para ele sobre esse “segredinho”, digo, que eu sabia do segredinho dele. Infelizmente não tive empregadas, mas não esqueço da mãe de um amigo... serve?
Quando você pretende fugir do Brasil?
Não tenho mais esse desejo. Já tive. Fui vencido pelo cansaço e agora estou religiosamente convencido de ter de pagar parte dos meus pecados aqui mesmo. Aquela outra parte que só Deus sabe.
Se surgir trabalho na Arábia Saudita, você sairia do Brasil na hora?
Jamais. Exceto, talvez, se for para um emprego de Xeique, no mínimo. Agora, não hesitaria em ser um califa. É melhor reinar no hospício do que servir nas arábias. Então, se for para fugir do Brasil para Arábia Saudita, é melhor ser o dono do parquinho.
Qual é o último lugar do mundo em que você trabalharia?
De degustador de comida de rua na Índia. Sem chance. Prefiro ser chapeiro no McDonald’s de Nova York do que pensar na possibilidade de encontrar um pelo de bigode sujo de um indiano na minha comida. Também não me veria como professor de filosofia na USP ou em qualquer universidade federal do país. Refletindo com mais cuidado, se o mundo me oferecesse apenas essas duas opções, eu escolheria o trampo de degustador de comida indiana.
Você gosta de malhar um Judas enquanto navega na internet?
Trata-se de um prazer muito solitário e pessoal. Prefiro não responder sobre a natureza dos prazeres solitários e pessoais. Não foi René Girard que teorizou sobre o bode-expiatório e desejo mimético? A internet potencializou o desejo mimético. Vou passar essa.
Qual escritor você acha melhor? Tolstói ou Flaubert? Não precisa ter lido nenhum dos dois. E, se leu, meus parabéns.
Tolstói. Prefiro a tragicidade megalomaníaca dos russos à obsessão pelo 'le mot juste' dos franceses. Flaubert é um microgerenciador de palavras. Às vezes, é preciso aplicar um pouco mais de tinta ao papel para revelar algo sobre as virtudes e os vícios da miséria humana.
Por que você teria algum otimismo sobre o nosso país?
Quem disse que eu tenho? Meu otimismo não é deste mundo. Digo isso no sentido mais “tiozão da paróquia” que possa existir. Entre militar por algum otimismo pelo bem do país e participar de uma procissão com as beatas da Igreja, fico com o terço e a ladainha: Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta melhor que tiraste em vida.
Você acha que a corrupção é tão grave assim ou foi apenas exagerada?
A corrupção política é grave, mas não tão grave quanto a corrupção da alma. O problema é que o poder político seduz mais facilmente as almas corrompidas. Maquiavel foi o filósofo que melhor entendeu isso. Mas diferentemente dele, eu prefiro não me meter com essas drogas pesadas.
Será que o problema central do nosso país não seriam os nossos políticos, mas o próprio Brasil?
Não existe 'Brasil'. Existem brasileiros. O xis da questão no nosso país é que a gente não forma aquela “comunidade imaginada” (estou usando o conceito meio por alto, sem entrar nos detalhes técnicos). A gente tá junto, mas é cada um por si. Fazemos de conta que somos um povo unido por alguma grandeza. Nossa preocupação social é mais uma virtude fingida. Os brasileiros se juntam pra pregar indignação seletiva e lamentar da própria miséria. Políticos, artistas, imprensa... estão aí pra alimentar essa nossa mania de parecer virtuosos, mas cada um só sabe mesmo olhar para si. Pra citar uma frase que o Roberto DaMatta gastou um tempo estudando (não que eu concorde com ele): Você sabe com quem está falando?
Você faz parte das pessoas educadas que ainda vivem no Brasil?
Eu sou um fingidor, bem brasileiro nesse aspecto. Minha educação é fingida. Meu lugar é aqui. Já não aspiro a ser uma pessoa educada ou representar algo a esse respeito. Claro, sou professor de filosofia há uns vinte anos e, com o passar do tempo, vi o ensino se afundar cada vez mais. Sinceramente, e serei bem honesto aqui: não há um dia sequer em que não me sinta corresponsável por esse naufrágio.
Há uma oposição no Brasil?
O Brasil não precisa de oposição para se autodestruir. Aqui, a oposição está exatamente do mesmo lado. Quem deveria fazer oposição são os indiferentes, aqueles que vivem no anonimato. São as pessoas que não se levam a sério. Eu gostava da imagem do malandro carioca, daquela malandragem libertina. Mas tudo isso foi substituído pelo identitarismo de esquerda e de direita, que são todos muito conscientes, todos muito comprometidos com suas agendas morais. Todos parecem ter algo muito sério e importante a dizer sobre o Brasil. No fim das contas, só gostam mesmo é de ouvir a própria voz, uns aos outros, num salão de espelhos, refletindo infinitamente a própria vaidade.
Você acredita que a oposição é tão corrupta quanto o nosso governo?
Na verdade, o governo é tão corrupto quanto a oposição. Mas estou me referindo a corrupção da alma, a única que, de fato, leva a gente ao buraco sem fundo.
Há algum político em que você votaria, mesmo que fosse de nariz tapado?
Não. Reabilitei um desinteresse meu para a política partidária e profissionalizante. Vivo entre dois mundos: o da abstração teórica e dos boletos. Entre esses dois mundos, a ponte não pode ser um político – nem o de estimação.
Existe alguma coisa de positivo hoje no país?
Cachaça e culinária – mas não a gourmet. Talvez o futebol, embora eu esteja desiludido. Não digo isso por causa da derrota do Palmeiras. Aliás, esqueci de mencionar coisas da minha infância. Meu avô era treinador de futebol em Itapira, cidade do Bellini. Guardo uma imagem afetiva muito positiva da cultura futebolística. Até tenho levado meus filhos para assistir a jogos no estádio e ensinado que ali é o lugar mais sagrado para soltar palavrões e xingar a mãe do árbitro.
Você acredita na Justiça?
Só na divina. Jesus na causa! As coisas belas são difíceis. Mas ainda tenho esperança de entrar no Reino de Deus.
Imagine que o presidente convida você para um chá ou para outra bebida qualquer. Você iria?
Só para tomar cachaça, falar de futebol e contar umas piadas. Pensando bem, trocaria o convite do presidente por uma tarde de conversa fora com o Felipão, o técnico de futebol. Imagina ter de explicar uma “gafe” do presidente para Daniela Lima?
Para um jovem brasileiro com pretensões de continuar a viver aqui, o que você recomendaria?
Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate. Mas não em italiano pra não parecer pedante.
Já te convidaram para uma escola de samba?
Não. Para onde envio o meu currículo?
*O questionário foi inspirado nas perguntas feitas por João Pereira Coutinho a Diogo Mainardi no texto “Diogo, o Terrível”, publicado na Folha de São Paulo no dia 05/02/2008.
Francisco Razzo. Nascido em Itapira, interior de São Paulo, em 1978. É professor de Filosofia. Escreveu alguns livros, dentre os quais Minha contribuição para tornar o mundo um lugar ainda pior. Se interessa pelos dilemas morais do aborto, por filosofia política e história da arte. Gosta de jogar videogame com os filhos.
" A minha infância foi miseravelmente corrompida pelo Pepe Legal "
Palavras de Diogo Mainardi
Quem puder ler a entrevista leia, sensacional!
Se tiver estômago ou quiser dar boas risadas leia o artigo de Reinaldo Avezedo sobre a mesma!
Gostei do tom bastante franco da entrevista.