#naoeentrevista: John Milbank
Um dos pensadores mais importantes da atualidade explica como será o mundo numa ordem pós-liberal
por João Pinheiro da Silva
John Milbank é amplamente reconhecido como um dos teólogos mais influentes da atualidade. Na década de 1990, fundou o movimento "Ortodoxia Radical" (Radical Orthodoxy), uma escola de pensamento teológico que desafia e reinterpreta os pilares da modernidade a partir de uma visão cristã. Defensor de um “pós-liberalismo” que visa aplicar esses princípios teológicos à esfera política, a influência de Milbank transcende o meio acadêmico e o mundo das ideias, tendo sido um dos principais mentores de movimentos como o Blue Labour, dentro do Partido Trabalhista, e o Red Tory, no Partido Conservador.
O que é o pós-liberalismo? É um termo que está a ganhar destaque nos últimos anos, sobretudo no discurso político – em especial, desde a nomeação de JD Vance como vice-presidente de Trump. O que é que este conceito implica, especialmente no contexto da política contemporânea?
Bem, no que diz respeito à política, penso que o pós-liberalismo significa pelo menos duas coisas diferentes.
Em primeiro lugar, num sentido objetivo, reflete o reconhecimento de que a era liberal pode estar a chegar ao fim. Por liberalismo, refiro-me a uma atitude que considera o indivíduo e a escolha individual como totalmente fundamentais. Durante muito tempo, em todo o espetro político, o liberalismo foi a atitude dominante. Por exemplo, à direita, vimos o neoliberalismo económico insistir na minimização do papel do estado, deixando que os mercados ditassem não só resultados económicos, mas, em muitos casos, também processos políticos. À esquerda, o liberalismo tem-se manifestado, em grande medida, através da ênfase nos direitos humanos como base da legitimidade política.
Poder-se-ia argumentar que, pelo menos desde os anos 60, o liberalismo tem desfrutado de um domínio quase incontestado, mas agora estamos a vê-lo ser desafiado por vários movimentos populistas (e outros). Houve um momento, depois da Guerra Fria, em que alguns pensaram que a história tinha terminado com o triunfo global da democracia liberal – fora a ideia de que, eventualmente, toda a gente acabaria por se conformar à mesma. Mas, em vez disso, o que vimos foi a China comunista transformar-se num híbrido de comunismo e capitalismo, recuperando a sua confiança, enquanto a Rússia se transformou em algo mais parecido com um Estado nacionalista e autoritário - definitivamente não democrático liberal.
Ao mesmo tempo, a ordem mundial liberal internacional, que era imposta pelos Estados Unidos, entrou em colapso. Durante algum tempo, depois da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos poderiam atuar perpetuamente como o guardião global dessa ordem, mas tal esperança cedo se revelou ingénua.
Assim, neste primeiro sentido, o pós-liberalismo reflete a ideia de que vivemos agora numa era em que o liberalismo já não é um paradigma incontestado – que está a ser desafiado por várias forças díspares.
O segundo sentido do pós-liberalismo é como uma filosofia positiva. Não é necessariamente uma filosofia anti-liberal; não é totalmente contra a liberdade individual ou a ideia de os indivíduos terem a liberdade de fazer as suas próprias escolhas. No entanto, os pós-liberais argumentam que este enfoque na liberdade individual, por si só, não é suficiente para sustentar a ordem política, social ou económica. Concordo com John Gray, um dos principais pensadores pós-liberais, que a ideia hobbesiana de que se pode gerar ordem a partir do caos de indivíduos em competição não se sustenta a longo prazo. Em vez disso, precisamos de um certo grau de consenso social e de coerência cultural. Tem de haver um senso partilhado do bem comum, de bens que só podemos procurar conjuntamente e não a título puramente individual. E também precisamos de uma noção do que constitui uma vida genuinamente boa para os indivíduos.
Neste sentido, o pós-liberalismo sugere que, embora as ideias liberais sobre a liberdade individual sejam importantes, precisam de ser complementadas por uma compreensão mais profunda e comunitária daquilo que une a sociedade.
Em que difere então o pós-liberalismo do enfoque liberal na liberdade de escolha, na igualdade de oportunidades ou em objetivos utilitários como a maximização da felicidade?