#NasceUmaEstrela
Sobre "Blonde", de Andrew Dominik, a obra-prima imperfeita (e polêmica) de 2023
Vamos falar sem mais delongas: Blonde, dirigido por Andrew Dominik e adaptado do romance de Joyce Carol Oates é, sem sombra de dúvidas, o maior filme de 2022. Essa, no entanto, não é uma opinião partilhada pela maioria do público e da crítica profissional. Muito pelo contrário.
A reação foi, em larga medida, negativa e, para mim, decepcionante, ainda que previsível: todo o cardápio de lamúrias e lamentações progressistas e identitárias apareceram: de que Andrew Dominik, um homem branco e heterossexual, não tem lugar de fala para contar a história de Marilyn Monroe; de que o filme explora a nudez e sexualidade de Ana de Armas; de que o filme não trata Marilyn como uma figura de empoderamento feminista (e não feminino, importante não confundir essas coisas); de que o filme não é fiel a quem Marilyn foi; etc. É tudo um tanto pequeno, não? Mesquinho. Não há humildade em se entrar em diálogo com o que Dominik fez em seu filme - que é um filme difícil, complexo, ambíguo. O filme causa desconforto, e sua longa duração é quase que um calvário. Isso, no entanto, não são deméritos. Há obras de arte que existem justamente para lidar com esse tipo de tema e de sensação.
E o que esperavam, afinal, que não um filme para ganhar Oscar de Melhor Filme? Por isso, entenda-se: uma produção gorda e luxuosa, com direção de arte acurada e glamurosa e figurinos de época igualmente chiques e deslumbrantes (o que se costuma chamar de costume drama); um retrato ficcional de Marilyn baseado em alguma biografia bestseller; um enfileiramento de fatos e eventos cronológicos temperados aqui e ali por reconstituições (melo)dramáticas que arranquem lágrimas do público; e tudo isso coroado por um final triste (trágico no sentido do senso comum), que “nos faz pensar” e “levante debates” (o debate, no caso, sendo algo como “interrogar o patriarcado”).
Acho que o que incomodou muita gente no filme de Dominik é que, em larga medida, ele faz exatamente isso: o filme segue uma linha cronológica, acompanha os principais momentos da carreira de Norma Jeane/Marilyn Monroe, sua entrada no cinema, escalada ao estrelato, os primeiros amores e casamentos, dois abortos, o vício em drogas, John F. Kennedy (“Two Minute Jack”) e eventual vício em drogas e morte precoce. Tudo isso está lá no filme. Mas Dominik pega esse enfileiramento de fatos, cronologia, e outras coisas típicas e clichês que caracterizam o prestigioso tema biográfico (em voga em Hollywood desde os anos 30) e os transforma completamente, a começar pelo fato de que Blonde é adaptado de um romance de Joyce Carol Oates, uma escritora que trabalha principalmente na chave do horror gótico (sua grande influência literária são as irmãs Brontë), surreal e do crime Noir. Como o crítico cultural Dionisius Amêndola notou com acuidade, Norma Jeane cria Marilyn Monroe como o Dr. Henry Jekyll criou o Sr. Edward Hyde. Criar talvez não seja a palavra apropriada: conjugar é melhor. Pois Marilyn se torna ao mesmo tempo, e igualmente, uma força maléfica e benéfica em sua vida. Norma tenta manter sua integridade não só em meio a uma indústria perversa, e em casamentos insatisfatórios, mas também diante da força gigantesca e titânica de Marilyn, a maior celebridade de todos os tempos.