#Natal: Onde Charles Dickens e Georges Bernanos se encontram
A época do ano em que a sociedade suspende suas engrenagens mais cruéis para permitir que aflore a compaixão
O Natal, na tradição cristã, é ao mesmo tempo consolo e escândalo. E é nesse paradoxo que se encontram Charles Dickens e Georges Bernanos. Ambos partem da mesma cena inaugural, a do Deus que se encarna numa criança, que nasce frágil num mundo cruel, mas cada um extrai dela sentidos distintos e complementares. Em Dickens, o nascimento de Cristo se traduz numa pedagogia moral: o mundo pode melhorar se os homens forem capazes de se reconhecer no outro. Em Bernanos, a mesma cena revela algo mais inquietante: o mundo, corrompido, não melhora: é Deus quem desce até ele para salvar a humanidade.
Para Dickens, o Natal é o instante em que a sociedade suspende suas engrenagens mais cruéis para permitir que a compaixão aflore. A conversão de Scrooge, do clássico Uma canção de Natal, não é apenas individual, mas exemplar: ao mudar o coração de um homem, muda-se um pequeno pedaço do mundo. A caridade, o perdão e a convivência aparecem como forças concretas capazes de restaurar vínculos rompidos. O milagre natalino, em Dickens, é humano, visível e comunicável — uma esperança que se aprende e se prática.
Uma canção de Natal
Charles Dickens
Penguin-Companhia, 2014
136 páginas
Bernanos, por sua vez, olha para o mesmo Natal com desconfiança diante do sentimentalismo. Para ele, a Encarnação não confirma a bondade do homem, mas expõe a sua miséria. Deus nasce pequeno não para nos tranquilizar, mas para nos desarmar; não para celebrar a virtude humana, mas para revelar sua insuficiência. O menino na manjedoura não é ornamento moral, mas acusação silenciosa a um mundo que continua a rejeitá-lo, mesmo quando o celebra.
Unidas, essas duas visões impedem tanto a ingenuidade quanto o desespero. Dickens lembra que a graça pode passar pelos gestos humanos, que a misericórdia pode ter forma social e que o Natal não é indiferente à injustiça cotidiana. Bernanos recorda que nenhuma reforma moral é definitiva e que a esperança cristã não se funda na melhora do homem, mas na perseverança da graça, apesar de sua queda. Um oferece piedade; o outro, lucidez.
Talvez o sentido mais completo do Natal esteja justamente nessa tensão. Ele é, ao mesmo tempo, convite à conversão moral e revelação da nossa insuficiência; apelo à caridade e denúncia do orgulho; festa que aquece o coração e um mistério que inquieta a alma. Entre Dickens e Bernanos, o Natal aparece como aquilo que realmente é: não uma solução simples para o mundo, mas a presença de Deus num mundo que ainda precisa — e sempre precisará — ser salvo.
Não poderia terminar o texto sem indicar também um livro de Bernanos. Ele não escreveu um especificamente sobre o Natal, tema que está espalhado em suas obras. Mas conseguiu enxergar a ameaça à liberdade pelo império da tecnologia e do controle mecânico da vida humana, em A França contra os robôs. É um ensaio excelente e bastante atual, embora escrito em 1947.
A França contra os robôs
George Bernanos
Tradução excelente de Lara Christina de Malimpensa
É Realizações, 2018
256 páginas





