Prólogo
É agosto de 1917. Jack Kirby nasce em Nova Iorque. É fevereiro de 1994. Kirby falece em Thousand Oaks. É agosto de 1961. Fantastic Four n. 1 chega às bancas. É abril de 1978. Kirby decide se afastar dos quadrinhos. É março de 1970. Kirby vai para a DC Comics. É março de 1975. Stan Lee anuncia o retorno de Kirby para a Marvel. É abril de 1976. The Eternals n. 1 começa a ser vendido.
É setembro de 1944. À margem leste do rio Moselle, Jack Kirby tem uma visão.
Uma visão do fim do mundo.
Nova Iorque, 1975, Hotel Commodore
Jack Kirby trocou a Marvel pela DC, no início da década de 70, em busca de mudanças.
Ele sempre esteve inconformado com a ausência de reconhecimento pelo seu trabalho. Stan Lee era considerado o grande responsável pelo surpreendente sucesso da Marvel. Desenhistas como Kirby, por outro lado, eram tratados como operários de sua genialidade, mesmo que a sua participação no processo criativo, por conta do Método Marvel, fosse superior à habitual em outras editoras. Lee, se não promovia essa ideia, ao menos não a desmentia e surfava no sucesso decorrente sem muitos constrangimentos. Kirby não acreditava mais que conseguiria alterar essa dinâmica, que também incomodava seus colegas [como Steve Ditko e Wallace Wood].
No final dos anos 60, no entanto, essa inconformidade se materializou em um problema concreto. Em 1969, o contrato que Kirby mantinha com a editora se encerraria e era preciso renová-lo.
Ainda em 1968, Kirby tentou renegociar a sua relação com a Marvel com Martin Goodman, proprietário da editora. A situação, no entanto, era extremamente complexa.
Goodman, que entrara no mundo dos quadrinhos pela porta das publicações baratas e oportunistas, já não deveria estar especialmente disposto a garantir qualquer benefício adicional a Kirby, nem mesmo aqueles que foram prometidos por Lee, em seu nome, nos anos anteriores. Goodman não enxergava qualquer mérito específico no trabalho de Kirby e encarava a publicação de gibis de uma forma exploratória e insustentável. Ele tolerava que Lee fizesse promessas porque não esperava que a editora fosse sobreviver para ter que cumpri-las.
Para piorar a situação de Kirby, ainda em 1968, a Marvel foi vendida para Perfect Film & Chemical, um conglomerado de empresas representado por Martin S. Ackerman e sem qualquer histórico no mundo editorial. Era um pessoal, em outras palavras, que não sabia nada de quadrinhos, desconhecia os méritos do trabalho do quadrinista e ainda por cima era completamente alheio às promessas que lhe foram feitas por Goodman [através de Lee] nos anos anteriores.
É provável que para a Perfect Film & Chemical Kirby não fosse mais do que um risco.
Aquelas promessas não cumpridas eram decorrência de um ambiente de trabalho pouco profissional. Elas formavam um acúmulo de pontas soltas na relação entre a editora, os seus quadrinistas e as suas criações. Eram promessas não cumpridas, contratos não assinados, relações trabalhistas de caráter dúbio – um acúmulo de problemas esperando o momento propício para se tornar uma avalanche.
Em 1969, os dois quadrinistas que trabalhavam a mais tempo para a Marvel eram Kirby e Lee. Eram, potencialmente, as duas montanhas que mais acumulavam problemas jurídicos em potencial.
Lee, no entanto, sempre foi um funcionário formalmente contratado. Tudo que ele produziu claramente se enquadrava na categoria de work for hire [trabalho contratado], e não existia qualquer dúvida de que os direitos de publicação desses gibis eram da Marvel. É possível que esse seja, inclusive, um dos motivos a que levaram que a criação de todos os personagens da editora fosse sistemática e exclusivamente atribuída a Lee. Ele era um porto seguro jurídico.
A relação de Kirby, por outro lado, nunca foi uniforme. Primeiro na década de 40, e depois entre 1958 e 1963, Kirby trabalhou para a Marvel sem qualquer contrato escrito. O status legal dos personagens que ele criou nesse período, portanto, poderia ser considerado dúbio. Entre esses dois períodos, Kirby participou da criação daqueles que eram os principais heróis da editora: Capitão América, Quarteto Fantástico, Vingadores…
Esse caráter dúbio, por outro lado, parecia especialmente perigoso naquele momento. Em 1966 e 1967, Joe Simon, que trabalhou com Kirby na editora na década de 40, ajuizou dois processos em desfavor da Marvel. Alegava que a criação do Capitão América ocorreu com base em um contrato verbal no qual Simon teria se reservado os direitos sobre o personagem.
Em 1969, Simon e a Perfect Film & Chemical resolveram a questão em um acordo. Kirby, cocriador do Capitão América, acreditava que merecia ser igualmente compensado não apenas pelo Capitão, mas também por ser pelo menos cocriador metade do Universo Marvel entre 1958 e 1963. A renovação de seu contrato parecia o momento propício para que isso acontecesse.
A Perfect Film & Chemical, no entanto, enxergava isso de outra forma. Ela pretendia aproveitar a oportunidade disponível, diante do iminente encerramento do contrato de Kirby, para negociar um acordo que lhes fosse vantajoso enquanto o quadrinista estava pressionado.
Assim, em dezembro de 1969, último mês de validade do contrato existente, eles propuseram para Kirby uma simples renovação nas mesmas condições. Essa renovação, por sua vez, estava condicionada à renúncia expressa a qualquer direito retroativo sobre os personagens que Kirby criara nos gibis publicados ao longo de sua relação com a editora, inclusive o Capitão América.
Era pegar ou largar. Caso não aceitasse a proposta, poderia permanecer trabalhando na editora na condição de artista freelancer, remunerado por página produzida, sem sequer a garantia de que lhe seria oferecido um fluxo mínimo de trabalho mensal por determinado período.
A oferta vinha no pior momento possível. Meses antes, Kirby se mudara para a Califórnia, do outro lado do país. A sua filha sofria de asma e a família estava em busca de um clima que fosse mais ameno à sua saúde. Kirby ficou pressionado. Ele precisava de um emprego garantido, mas não estava disposto a renunciar a direitos que foram garantidos pela mesma empresa ao seu antigo colega, Simon. Também não estava muito disposto a ser tratado como um simples risco e que a sua participação na criação da Marvel fosse interpretada apenas como um futuro problema judicial.
Na DC, por outro lado, a perspectiva parecia diferente.