Um casal descobre que a filha foi trucidada pelos irmãos bestializados (“A galinha degolada”). Um marido assiste à morte lenta da esposa e só depois vem a saber do motivo: o travesseiro de penas escondia um animal monstruoso, que sugava o sangue da sua vítima dia após dia, silenciosamente (“O travesseiro de penas”). Em retrospectiva, um homem relata os dias que se sucederam a um ataque de raiva canina (“O cão raivoso). Um joalheiro, trabalhador devoto e marido fiel, se transforma e ataca o objeto de seu desejo (“O solitário”). Um cachorro de raça se vê na inglória missão de manter a honra num ecossistema fadado ao canibalismo e à degradação (“Yaguaí”). As ligeiras descrições acima se referem aos contos de Horácio Quiroga, escritor uruguaio que foi um dos principais autores da literatura latino-americana da primeira metade do século XX. Ainda que não tenha sido um dos autores prediletos da crítica de seu tempo, seus escritos alcançaram reconhecimento junto ao grande público. E seu talento é equivalente à sua trajetória, trágica e extraordinária ao mesmo tempo, afora à sua capacidade de imaginação e a um olhar arguto a propósito do sentido da existência. Seria exagerado, talvez, afirmar que a obra de Quiroga é autobiográfica. Mas é irresistível estabelecer algum tipo de conexão, e os motivos para tanto não faltam, conforme se verá a seguir.
Nascido em Salto (Uruguai), no último dia de 1878, Horácio Silvestre Quiroga Forteza viveu com intensa dramaticidade seus 59 anos de vida – morreu em 1937 em Buenos Aires. Entre outras atividades, foi jornalista, professor e ocupou posição na burocracia diplomática na Argentina, mas é por seu legado como escritor que ele seria lembrado, sobretudo pelos leitores que apreciavam seus contos. E aqui é necessário apontar para a primeira distinção de Quiroga como autor: suas narrativas curtas se notabilizam não apenas pela concisão, mas porque trabalham, sob diversos prismas, a questão da morte, como uma sentença da qual não se pode escapar. Em certa medida, é possível estabelecer conexão entre essa preferência temática e a própria vida de Quiroga. Afinal, toda a sua jornada é marcada pela morte: seja de seu pai, quando o escritor ainda tinha meses de vida; passando pelo falecimento de sua mãe, ainda na infância; de seu melhor amigo, vitimado por acidente com arma de fogo manuseada por Quiroga; e culminando com a depressão e a morte de sua primeira esposa, Ana Maria Cirés. Tudo isso antes dos 40 anos de idade.