#OFeticheLiberal
Qualquer ideia de ordem internacional democrática não passa de uma narrativa criada pelos defensores de uma suposta governança global.
O multilateralismo é um dos grandes fetiches de jornalistas como Eliane Cantanhêde. Ingênuos, eles acreditam em um mundo onde acordos selam a paz e garantem o equilíbrio. Toda essa ilusão não passa de um delírio reconfortante, uma ficção conveniente. Convenhamos: o alarmismo histérico também esconde um método de domesticação.
A realidade dói, mas precisa ser jogada na cara. O sistema internacional não opera por regras de boa convivência. Opera por força, imposição e medo. Kenneth Waltz, em Theory of International Politics (1979), já demonstrou a natureza anárquica das relações: cada Estado busca maximizar seu poder porque não há quem o impeça. Nunca haverá uma autoridade central, garantias globais ou o chororó liberal para mudar essa estrutura. O que há é anarquia. Portanto, cálculos de sobrevivência. Pactos internacionais valem enquanto forem úteis. E são, quanto qualquer promessa política, facilmente descartados.
Qualquer ideia de ordem internacional democrática não passa de uma narrativa criada pelos defensores de uma suposta governança global. Eles partem da premissa fantasiosa de que a interdependência econômica e as instituições multilaterais reduzem conflitos e garantem a estabilidade entre as nações. Obviamente, precisam impor essa crença. Argumentam que tratados, comércio e diplomacia asseguram um sistema internacional pacífico, onde os Estados respeitam normas em benefício coletivo. Para isso fazer sentido, precisam, no entanto, ocultar um detalhe: essa suposta paz não passa de um mecanismo conveniente para justificar a hegemonia das potências dominantes. Funciona, claro. Mas funcionam enquanto lhes convém.
O sonho da ordem internacional democrática é uma espécie de Pax Liberal que pode ser traçada até A Riqueza das Nações (1776), de Adam Smith. Simpatizo com Smith em muitos detalhes. Porém, para ele, o livre comércio geraria prosperidade mútua entre os Estados e, ao fomentar a interdependência econômica, reduziria incentivos para a guerra. Essa lógica foi posteriormente incorporada à doutrina liberal das relações internacionais, especialmente no século XX, sob a crença de que a globalização econômica garantiria estabilidade política e evitaria conflitos.
A guerra que acabaria com todas as guerras nunca chegou em definitivo. Nem em 1918, quando o mundo prometeu que o horror das trincheiras jamais se repetiria. Nem em 1945, quando a criação da ONU tentava ser o antídoto para o apocalipse atômico. Guerra Fria, massacres na Ásia, genocídios na África, intervenções no Oriente Médio... Os mesmos que prometeram uma ordem estável seguiram travando guerras preventivas e sustentando golpes de Estado em nome da “liberdade” e do “progresso”.
O comércio internacional nunca impediu conflitos. Apenas os reorganizou. Os tratados internacionais não baniram a guerra. Apenas a sofisticaram. O Ocidente liberal, enquanto prega normas e boas intenções, usa sanções econômicas como armas geopolíticas e financia a instabilidade quando necessário. A interdependência nunca foi um escudo contra o caos. Foi apenas mais uma ferramenta de dominação.
Adam Smith acreditava que um mundo economicamente integrado teria menos incentivos para o conflito. Talvez fosse verdade para comerciantes que operam dentro da lógica de ganhos mútuos. Mas os Estados não são mercadores. São máquinas de poder, movidas pelo medo da perda e pela sede de controle. A globalização não criou um mundo mais seguro. Ao contrário, transformou as disputas diretas em estratégias veladas.
Olha que ironia: os mesmos países que propagaram essa lógica idealista como um modelo civilizacional – a Europa Moderna e, mais tarde, os EUA – utilizaram o livre comércio como justificativa para a dominação colonial e a hegemonia liberal. A retórica da Pax Liberal, que prometia prosperidade e harmonia por meio da expansão dos mercados, serviu de fachada para a imposição de interesses e a consolidação do domínio das grandes potências. Na prática, a doutrina liberal impôs monopólios, explorou colônias e garantiu que o desenvolvimento ocorresse de forma assimétrica, sempre beneficiando as potências ocidentais.
Dessa forma, a Pax Liberal tornou-se um instrumento de dominação, e não de prosperidade compartilhada entre as nações. Ao contrário dos que os liberais propõem, os Estados poderosos não desejam vizinhos ricos e autônomos. Desejavam mercados dependentes e subordinados. Não precisa ser um esquerdista para perceber isso. Agostinho já sabia que o coração humano corrompido pela vaidade deseja poder.
O discurso sempre foi sedutor: mercados abertos trariam progresso, comércio significaria paz, e a ordem liberal superaria as rivalidades nacionais. Mas, na realidade, o comércio serviu como um instrumento de coerção e hegemonia cultural. O liberalismo econômico, propagado como sinônimo de liberdade e crescimento mútuo, foi na prática a ferramenta para garantir a supremacia das grandes potências.
A narrativa liberal encobriu a pilhagem colonial, transformando o saque sistemático de recursos em um suposto "desenvolvimento civilizatório". E agora, de repente, tudo isso desapareceu do radar desses jornalistas tão preocupados com Trump? Como se Biden fosse o porta-voz da paz e prosperidade internacional e como se as sanções econômicas, as guerras por procuração e as intervenções disfarçadas de ajuda humanitária fossem algo do passado. A histeria também é seletiva. O que antes era chamado de imperialismo, agora veste o nome de "defesa da democracia".
O multiculturalismo progressista se sustenta nesta contradição evidente. Quando as normas internacionais beneficiam as potências hegemônicas, são inegociáveis. Quando deixam de servir, são descartadas. A história prova isso repetidamente. Quem ainda acredita que o liberalismo internacional – hoje com o filtro fofinho de multiculturalismo – se baseia em altruísmo como progresso moral e não em dominação deveria perguntar aos países que foram "pacificados" pela Europa e pelos EUA ao longo dos últimos séculos. A memória dos progressistas é bem seletiva nessa hora.
A ONU ilustra bem a farsa. Onde estava a Pax Liberal em 1994, quando o genocídio de Ruanda matou 800 mil pessoas em cem dias? Nenhuma força de paz evitou o massacre. Nenhuma sanção intimidou os assassinos. Nenhuma resolução salvou um só tutsi. Mas diplomatas continuaram discursando. Escrevendo relatórios. Produzindo recomendações inúteis.
E Ruanda não foi um caso isolado. O mundo assistiu passivamente à limpeza étnica na ex-Iugoslávia. No Sudão, entre 2003 e 2005, o genocídio de Darfur deixou centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, e a "comunidade internacional" se limitou a declarações formais de indignação. A perseguição contra cristãos na Índia cresce a cada ano, com igrejas queimadas, padres linchados e famílias forçadas a se converter ao hinduísmo radical. Nos primeiros 75 dias de 2022, foram registrados 161 incidentes de discriminação e perseguição contra cristãos no país. No norte da África e no Oriente Médio, a ascensão do Estado Islâmico trouxe um rastro de destruição: cristãos foram crucificados, mulheres yazidis escravizadas, templos destruídos. A ONU também nada fez para impedir os massacres dos uigures na China, confinados em campos de reeducação e vítimas de uma política sistemática de apagamento cultural. No Iêmen, a guerra civil alimentada por potências regionais reduziu milhões de civis à fome, sem que houvesse qualquer ação significativa por parte das potências liberais que supostamente zelam pela paz mundial. Claro, houve sim: recomendações, discurso e o blábláblá liberal de sempre.
Enquanto isso, os multiculturalistas seguem seletivos. Ignoram genocídios na África. Silenciam diante da perseguição religiosa na Ásia. Relativizam o fundamentalismo islâmico. Mas mobilizam campanhas internacionais quando se trata de atacar o "extremismo branco" no Ocidente. A narrativa precisa ser mantida. Afinal, a Pax Liberal não se preocupa com vidas. Preocupa-se em controle ideológico do discurso. E jornalistas como a Eliane Cantanhêde acha que o problema mesmo é o Trump.
A chamada ordem baseada em regras é um joguinho sujo de cartas marcadas. Quem acredita no contrário não aprendeu nada com Maquiavel. Política não é um campo de virtudes. É para determinar quem manda.
John Mearsheimer, em The Tragedy of Great Power Politics (2001), demonstrou isso melhor do que ninguém. O sistema internacional não é apenas anárquico. É inerentemente competitivo. Os Estados, sobretudo as grandes potências, não buscam segurança. Buscam maximizar sua influência para evitar a própria vulnerabilidade. O multilateralismo, nesse cenário, nada mais é do que um instrumento tático. Usado quando útil. Abandonado quando inconveniente.
Trump não destruirá o multilateralismo e instaurará “um salve-se quem puder no mundo”. Na verdade, ele só revela o fetichismo da doutrina liberal. E aqui não estou fazendo um elogio a ele. Apenas lembro que políticos como Trump mostram que a ONU não manda nos EUA. Que a OMC não regula o comércio global. Que a diplomacia funciona enquanto for vantajosa. O que a imprensa chamou de "ataque à ordem mundial" foi, na verdade, a simples revelação de uma verdade inconveniente para hegemonia dos liberais.
O multiculturalismo é a versão fofa do idealismo liberal aplicado à política internacional. Assim como os multiculturalistas acreditam que diferentes culturas podem coexistir em harmonia dentro de um Estado, os internacionalistas acreditam que diferentes nações podem coexistir pacificamente dentro de uma ordem global regulada por instituições... liberais progressistas, claro. Ambos mascaram a dinâmica do poder.
Assim como dentro de um Estado a diversidade cultural não anula conflitos de valores e interesses, no sistema internacional a diversidade de Estados não anula as disputas por hegemonia. O multiculturalismo fracassa porque parte do pressuposto de que todas as culturas são equivalentes. Eles ignoram que algumas são mais dominantes e agressivas do que outras. Inclusive a própria ideia de multiculturalismo, que disfarça bem os interesses dos progressistas. Por isso, da mesma forma, o multilateralismo fracassa porque assume que os Estados estão dispostos a respeitar normas comuns, por “virtude”, quando, na verdade, todos buscam maximizar seu poder e subjugar adversários.
O sistema internacional é anárquico. A competição entre Estados é permanente. A história do mundo não é uma linha reta de progresso e harmonia. É uma sucessão de guerras, dominação e realinhamentos estratégicos. O multiculturalismo é a maior mentira já contada. Quem ainda acredita nela, como Cantanhêde, se delicia no próprio delírio.
Diplomacia não é um apelo moral. É estratégia. Quem se fia em tratados esquece que eles são frágeis. Que são revogados quando não interessam mais. Quem se escora na ONU, na OMC ou na OEA deveria se perguntar quantas vezes essas instituições realmente impediram uma guerra, um massacre. Nenhuma. O palco internacional é uma arena. E é preciso lidar com isso. Pois os fortes ditam as regras. Os fracos tentam sobreviver. Quem insiste em acreditar no contrário seguirá com essa histeria tão inútil quanto maliciosa.
Sensacional, Razzo!
Um texto vigoroso.
Você podia passar um pouco desse vigor para o Abel Ferreira. Nosso time está muito modorrento.
Parabéns, uma excelente reflexão sobre os dias atuais.