#OLiberalismoClássicoMorreu
Não existe liberdade sem a liberdade de errar, sem a liberdade de se exagerar, sem a liberdade de parecer tolo.
A liberdade individual é a base da democracia moderna. E essa liberdade só deve ser limitada quando causa algum tipo de mal a terceiros. Paradoxalmente, quando a humanidade desenvolveu a internet – uma tecnologia capaz de potencializar a expressão individual de maneira inimaginável para nossos antepassados – acabou matando o liberalismo clássico. Na chamada era da informação, um amálgama de autoritarismo moral e hipervigilância digital abriu espaço para um tipo de intolerância travestida de virtude.
Poucos se lembram de que a livre expressão não é apenas sobre o direito de falar (ou escrever), mas também sobre o direito de ouvir (ou ler). Talvez soe estranho, mas as pessoas têm o direito de ouvir (ver ou ler) coisas desagradáveis. O motivo pelo qual fazem isso é algo que deixo para os psicólogos e neurocientistas. De qualquer maneira, pessoas ao redor do mundo gostam de pagar para ver filmes sobre monstros, fantasmas, guerras e serial killers. Outros gostam de pagar para ouvir piadas de mau gosto. Sem falar em músicas com letras pornográficas ou violentas.
O pathos do liberalismo clássico, portanto, é sobre o direito de se expressar e de ouvir. Contudo, esse pathos parece ter mudado: agora a democracia exige a supressão do que “fere” ou ainda daquilo que “desinforma”.
O problema que quase tudo pode ofender ou desinformar alguém. Fala-se muito das relações e amores líquidos atuais, para citar as expressões de Bauman que já viraram clichês, mas poucos citam o autoritarismo líquido que se espalhou pela nossa sociedade. Esse autoritarismo não é centralizado como nas ditaduras clássicas, mas é difuso: está nas instituições estatais que buscam proteger a democracia e o direito de minorias, assim como na justiça popular da cultura do cancelamento e mesmo no algoritmo das redes sociais que escolhem aquilo que você deve ou não ver.
A dolorosa verdade é que chegamos ao esgotamento ético do liberalismo. A democracia atual parece, muitas vezes, mais interessada em chegar a unanimidades emocionais do que a qualquer outra coisa. No passado, inúmeros grupos (religiosos, filosóficos, políticos, científicos etc.) se sentiram desconfortáveis e mesmo ofendidos diante da busca pela verdade ou diante do mero questionamento do status quo. As revoluções políticas, científicas, religiosas e artísticas da nossa história não teriam sido possíveis sem essas “ofensas" e discórdias.
O medo de ofender cria uma sociedade do conformismo. Não existe liberdade sem a liberdade de errar, sem a liberdade de se exagerar, sem a liberdade de parecer tolo. Se, por um lado, nossa liberdade pode ser ameaçada por tanques de militares golpistas; por outro, ela também pode ser ameaçada por burocratas buscando algum senso de missão. Acabar com o dissenso e as ofensas nas democracias é acabar com a própria disposição para o pensamento.
O liberalismo clássico está morto. Assim como no livro O Assassinato no Oriente Express de Agatha Christie, todos são culpados. A esquerda o assassinou em nome da justiça social; a direita, em nome da ordem moral; o Judiciário, em nome da democracia; e a imprensa, em nome da verdade (em seu combate às fake news). Com o assassinato do liberalismo clássico, morre também o conceito do indivíduo como um ser capaz de julgar ideias, refutar erros e sustentar o convívio entre divergentes.
Excelente, excelente!
Involuímos do "É Proibido Proibir!" para 'É proibido discordar!"...
Será que isso dá música?
Excelente texto, parabéns.