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Entre os cordeiros e as ovelhas: a eleição e os primeiros passos de Leão XIV
Como a imprensa sempre acaba caindo na mera superficialidade e não tem nada importante a dizer, além dos clichês dos vaticanistas de ocasião, o NEIM procurou quem entente do assunto para trazer alguma perspectiva para o novo papado que se inicia.
Por Rudy Albino de Assunção*
O profeta Isaías, quando falava do regresso a Sião (depois do Exílio) vaticinava que no “caminho santo” do povo “não haverá leão, nem outro animal feroz subirá por ele, ou nele será encontrado” (35, 8-9). Diferentes seriam os tempos messiânicos, quando viriam um novo céu e uma nova terra: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha com o boi; quanto a serpente, a terra será seu alimento” (65, 25). O leão aqui não desaparece e não é mais feroz; ele não devora, mas se torna “comensal” do boi, que deveria ser a comida.
Bento XVI se comparou diversas vezes com um animal de carga, dado o urso de S. Corbiniano no seu brasão, submetido pelo santo a levá-lo a Roma por ter devorado a sua montaria; Bento, depois, teve que lidar com os corvos que roubavam documentos. Francisco foi eleito para lidar com os lobos, não menores e não menos ferozes que o de Gubbio (conforme a analogia de Marco Politi); agora, temos Leão XIV, um frade agostiniano. O manso Leão converteu-se no Pastor dos Cordeiros e das Ovelhas.
Para retomar o horizonte de Isaías e fugir por hora das analogias e referências animalescas, ontem vimos não a chegada dos tempos messiânicos – embora a frase que abre a proclamação da eleição papal seja extraída do anúncio angelical do nascimento do Menino Deus: “anuncio-vos uma grande alegria” (Lc 2, 10), mas um novo tempo para a Igreja Católica.
O discurso de Leão XIV começou sem palavras. Com olhar marejado e silêncio eloquente disse muito: queria ver, sentir, ouvir. Estremecido, sabia que agora era a Rocha. Os cardeais optaram por Robert Francis Prevost: não só um Papa americano; antes, um “Papa das Américas”, como alguns já dizem. Domínio de muitas línguas, origem étnica plural: italiana, francesa, espanhola, estadunidense e um tanto peruana, vamos dizer. Quase uma síntese ou uma encarnação de um colégio cardinalício tão internacionalizado.
Perfil discreto, moderado. Muito diplomático. Ter lido o discurso mostra que quer ter controle sobre o que vai dizer. Talvez seja o primeiro marcador de diferença com o antecessor: menos improvisação.
Um cardeal missionário tirado do mundo latino-americano para os corredores da Cúria Romana, a fim de nomear ninguém menos do que os bispos do mundo inteiro. O fazedor de bispos foi feito bispo de Roma, um “bispo dos bispos”.
Ser agostiniano mostra a sua inclinação espiritual e mística. O amor pelo bispo de Hipona o aproxima mais de Bento XVI, um agostiniano do ponto de vista intelectual. A repetição da frase de Agostinho para o seu povo é salutar: para o povo ele é bispo; com o povo ele é cristão. A máxima de todo antístite da Igreja.
Suas primeiras palavras foram de paz. Retomou o sentido de pontífice: ele quer ser um construtor de pontes. Numa Igreja de grupos em extremos, ele precisa, de fato, ser fator de união.
Citou Francisco, do qual recolhe o legado – sem buscar imitação. Escolher o nome de Leão o remete a Leão XIII, pai da doutrina social da Igreja. Uma decisão sábia, pois ele lança o seu nome para décadas atrás, saltando a memória recente de papas marcantes. Se ele quis realmente associar-se a Leão XIII, ele consegue mostrar a sua preocupação social sem colar-se inexoravelmente ao programa de Francisco – do qual foi executor.
Ele não acentuou demasiadamente a dimensão local do seu ministério. Saudou a Diocese de Roma, mas não criou dicotomias entre papado universal e episcopado romano. Nisso se distancia da noção de primado de Francisco. Isso se viu quando adotou as vestes pontifícias previstas para o rito: mozzetta violácea, cruz peitoral com cordão dourado, estola papal, roquete... Não foi longe, ao não adotar os múleos (sapatos vermelhos) tão caros aos papas pré-Francisco. Por hora, scarpe nere.
Na Missa com os cardeais na Capela Sistina, falou em inglês, em caminhar juntos como comunidade de discípulos, tomando o salmo do dia como pretexto... Uma alusão indireta à sinodalidade? De qualquer modo, não fez um discurso autocentrado. Não falou muito de si nem de suas escolhas. Foi uma homilia totalmente bíblica. Apresentou-se como fiel administrador (um papa matemático deve entender bem disso). O papa deve agir em benefício do corpo místico de Cristo, a Igreja. Outros preferem o termo mais sociologicamente atraente de “povo de Deus”. Mas ele usou uma expressão que Pio XII ajudou a consagrar. Foi uma escolha, não uma negação de expressões paralelas ou correlatas.
A Igreja é apresentada farol para o mundo (a luz é Cristo, já lembrava a Lumen gentium). Ou seja, o mundo precisa de luz. A Igreja não deve se destacar por suas estruturas – burocráticas ou monumentais –, mas pela santidade dos seus membros. Tomando o Evangelho do dia, o novo Papa tratou do anúncio da identidade de Jesus ao mundo de hoje: fez o contraste entre a resposta do mundo (Jesus não tem importância) e a resposta das pessoas comuns (homem sábio, mas só um homem). Num cenário de poder Jesus passa como alguém sem importância; num cenário favorável, é alguém digno de ser ouvido. Para nós cristãos, que cremos e repetimos com Pedro (o de ontem e o de hoje), Jesus é o Messias, o Filho do Deus vivo.
Para o papa, essas são ideias presentes ainda hoje, pois a fé é considerada para pessoas sem inteligência. Assim, falta o testemunho cristão, pois onde falta fé vêm tragédias como a falta de sentido e a desagregação social. Mas isso não ocorrerá sem conversão pessoal e coletiva (eclesial). E qual a função do Papa nesse processo: ser Sucessor de Pedro, Bispo de Roma, presidindo o Amor-Caridade. E a menção aqui de Inácio de Antioquia já nos mostra que teremos um pontificado realmente patrístico. Ademais, para Leão XIV o ministério de autoridade é inspirado em João Batista: desaparecer para que Cristo apareça.
Resumindo as minhas primeiras impressões, o Papa fez uma homilia centrada na Liturgia da Palavra, profundamente cristológica, contrapondo – sem hostilidade e negatividade – a percepção do mundo e a da Igreja (fronteiras bem definidas entre ambos). Cidade de Deus e cidade dos homens. Agostinho na veia. Houve um equilíbrio entre a dimensão primacial e a de bispo de Roma. Citar Inácio mostra apelo à tradição mais básica sobre o primado papal.
Agora um último ponto: o papa mostrou-se muito à vontade com a liturgia vaticana. Paramentos mais ricos - no estilo das mais elaboradas sartorias romanas. Nitidamente o cerimoniário teve liberdade de preparar uma Liturgia de acordo com os livros e as possibilidades dadas pela sacristia vaticana. O papa fala e canta latim sem sotaque inglês carregado.
É nítida a presença de Francisco no novo papado. Como referência ou inspiração, não como molde. Os primeiros sinais são esses para mim. Sinais de que a tradição da Igreja segue o seu curso e de que, no fim das contas, não temos a “Igreja de Papa Francisco” ou a “Igreja de Leão XIV”. Temos a Igreja de Cristo. E ela mostrou nas últimas semanas que o luto se converte em alegria. Que o leão estará em paz com as ovelhas. Espero que nos próximos anos isso vá além da profecia.
*Rudy Albino de Assunção é Mestre e Doutor em Sociologia Política (2010, 2016) com Pós-Doutorado em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2020). É autor de O Sacrifício Da Palavra . A Liturgia Da Missa Segundo Bento XVI (Ecclesiae, 2016) e Bento XVI, A Igreja Católica e o "Espírito da Modernidade (Paulus, 2018).
Impossível não se emocionar e se identificar com o Papa que está plenamente sensível aos desafios do presente (em seu sentido mais profundo e abrangente). Fazer referência ao Rerum Novarum e à Inteligência Artificial, ele da foco no social, porém não no seu aspecto teórico e conceitual, mas indo ao âmago da questão: o Futuro do Trabalho.
👏👏👏👏