Em uma leitura, ou releitura, de O Poder e a Glória, talvez a grande obra de Graham Greene, eis que encontramos a seguinte passagem, que é narrada quando o protagonista da história, um padre alcoólatra, está trancafiado em uma cela com outros degradados e caídos, a escuridão é quase total e o cheiro é nauseabundo, uma das vozes admoesta o protagonista, desejando que ele morra depressa:
“Ele não distinguia no escuro, mas podia encontrar em suas velhas recordações grande número de rostos com os quais aquela voz combinaria muito bem. Quando se pode imaginar com minúcia o rosto de um homem ou de uma mulher, a gente começa inevitavelmente a sentir piedade…uma qualidade da imagem de Deus…Se se examinam as pequenas rugas dos cantos dos olhos, a forma da boca, a implantação dos cabelos, é impossível odiar. O ódio não é nada mais que uma derrota da imaginação.”
Essa passagem me lembrou imediatamente as reflexões do filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, sobre como nossos relacionamentos, mediados pelo smartphone, nos negamos a olhar verdadeiramente o outro.
“Na comunicação digital, o outro está cada vez menos presente. Com o smartphone, nós nos retiramos em uma bolha que nos blinda do outro.
[…]
A comunicação via smartphone é uma comunicação desencarnada e sem visão. […] A digitalização faz o outro desaparecer como mirada. A ausência do olhar é corresponsável pela perda de empatia na era digital. […] O olhar constrói a confiança fundamental. A falta do olhar leva a uma relação perturbada consigo mesmo e com os outros.”
E mais:
“O desaparecimento do outro é na verdade um evento dramático. Mas isso acontece de forma tão imperceptível que nem mesmo estamos propriamente cientes disso. O outro como mistério, o outro como olhar, o outro como voz que desaparece. O outro, roubado de sua alteridade, naufraga em um objeto disponível e consumível.
[…]
Se o mundo consiste apenas em objetos disponíveis e consumíveis, não podemos entrar em uma relação com ele.”
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Já não nos interessamos em olhar para o rosto de um outro, perdemos tal capacidade, condicionados que estamos pelo rolar incessante das telas lisas de nossos smartphones. Olhar e perceber verdadeiramente o outro é um inconveniente, um embaraço, e assim, perdemos a capacidade de apreender e amar o mistério de Deus encarnado em sua face.
Perdendo o contato com o outro perdemos algo que nos poderia servir como régua, para entendermos melhor quem somos e também nossas motivações e ações.
Isso gera um comportamento egoísta e hedonista, fazendo com que não tenhamos limites nem com os outros e nem com nós mesmos, afastando a presença de Deus, como diz o artigo.