[Leia a segunda parte do ensaio]
*Por Vicente Renner
A sociedade e A Bomba
Em Cidade dos Corpos, Yoko Ota descreve da seguinte forma a sua motivação para escrever sobre os efeitos do bombardeio nuclear de Hiroshima:
Os corpos estavam deitados em todos os lugares, à esquerda e à direita, e no meio da rua. Alguns estavam com o rosto pra cima e outros com o rosto pra baixo, e todos eles tinham se dirigido ao hospital. Com os seus olhos projetados, com os lábios machucados e inchados, os membros esturricados, eles pareciam bonecas horrorosas, grandes e de borracha. Chorando copiosamente, gravei a imagem dessas pessoas no meu coração.
“Irmã, você se acostumou a vê-los, não? Eu não consigo parar e olhar para os corpos”.
“Irmãzinha, você parece estar me criticando”, respondi. “Estou olhando para eles com os olhos de um ser humano e com os olhos de uma escritora”.
“Como você pode escrever sobre coisas assim?”
“Depois de ter visto essas coisas, preciso escrever sobre elas. Essa é a responsabilidade do escritor”.
Para Ota, descrever a sua experiência da realidade de forma objetiva é uma responsabilidade.
Gen - Pés Descalços, a mais conhecida hq sobre o bombardeio nuclear de Hiroshima, opera em uma chave semelhante. O seu autor, Keiji Nakazawa, é um hibakusha, e o mangá parte de sua experiência como sobrevivente da explosão. Em uma de suas cenas mais marcantes, Gen, o protagonista, encontra a sua casa em chamas e testemunha a morte de seus familiares:
É uma cena biográfica. Conforme o próprio descreveu em uma entrevista para o Japan Times:
A diferença entre a morte do meu pai em Gen - Pés Descalços é que eu mesmo não estava lá. Minha mãe me falou sobre o que aconteceu, com os detalhes cruentos. Era algo que estava na minha cabeça, então no mangá eu decidi colocar o Gen lá para tentar salvar o seu pai.
A minha mãe tinha pesadelos sobre isso. Ela disse que era insuportável, que ela ainda ouvia o choro do meu irmão. Ela disse ‘vou morrer com você’ e segurou forte o meu irmão, mas, por mais que ela tentasse, não conseguia tirar ele dos escombros. Enquanto isso, meu irmão dizia ‘está muito quente!’, e o meu pai dizia ‘faça alguma coisa!’. Eiko, a minha irmã, estava presa entre vigas e não dizia nada. Naquela hora, minha mãe disse, ela mesmo já tinha enlouquecido. Ela gritava ‘vou morrer com você’. Por sorte, um vizinho passou por ela e disse ‘por favor, pare, não adianta. Não adianta morrer com eles’. E quando ela se virou, as chamas estavam muito forte, e ela conseguia ouvir claramente os gritos do meu irmão, ‘mãe, está muito quente!”. Era insuportável. Minha mãe me contou isso, não podia estar mais amargurada. Uma forma horrível de matar.
Esse caráter autobiográfico aproxima Gen - Pés Descalços do formato graphic novel internacional. A experiência pessoal como fonte do insight que permite a análise de um acontecimento político aproxima a hq de Persépolis, em que Satrapi fala da revolução iraniana através de sua biografia, ou Maus, em que Art Spiegelman, que fala do Holocausto através da relação com o seu pai. Nos anos 2000, Gen foi relançado nos EUA pela Last Gasp, editora de comix underground que se reinventou como editora de livros e graphic novels.