[Leia a quarta parte do ensaio]
Por Vicente Renner
Uma outra realidade
Um dos elementos cujo significado é normalmente reduzido nas resenhas sobre A Bomba é a voz do narrador. A hq é narrada em primeira pessoa pelo urânio utilizado na fabricação da bomba de Hiroshima.
Isso é mais do que uma curiosidade. Alcante e Bollée dão voz para o Urânio para lhe atribuir personalidade – a personalidade de um deus arcaico:
Fui batizado em 1789. Chamaram-me de Urânio, ao que parece, em referência a um planeta que eles tinham acabado de descobrir.
De minha parte, prefiro ver aí uma ligação com Urano, o deus do céu para os romanos!
Em sua união com a Terra, ele gerou os colossais Titãs e, de seu sangue, nasceram as fúrias.
Sinto que também farei nascer muitas coisas!
Não é a primeira vez que a bomba atômica é interpretada como ação divina. Mesmo em Flores de Verão, Tamiki Hara compara Hiroshima ao inferno budista:
Foi então que eu percebi, no céu acima da metade do rio, uma camada de ar absolutamente translúcida se aproximando de nós, tremulando. Um tornado, eu pensei; já naquele momento sopravam ventos violentos sobre as nossas cabeças. As árvores e as plantas que estavam ao nosso redor tremiam; subitamente, vi muitas árvores passando sobre a minha cabeça, sugadas pelo vento, repentinamente, e levadas na direção do céu. Elas dançavam loucamente no ar, as árvores caiam no meio do redemoinho com a força de uma flecha. Não lembro qual era a cor do ar ao nosso redor. Mas acho que estávamos agasalhados pela luz esverdeada e sinistra de uma pintura medieval do inferno budista.