Com a óbvia exceção de Franz Kafka, o cantor e o compositor australiano Nick Cave é o melhor escritor de inícios literários nos últimos tempos. Quem pode superar esses começos: “Não acredito em um Deus intervencionista, mas eu sei que você sim, querida”, “Assim que sentei tristemente ao seu lado, ela acariciou o gato no colo e vimos o mundo passar”, ou “Você desabou do céu e caiu em um campo perto do rio Adur”?
Cada verso acima é extraído dos primeiros versos dos seguintes álbuns – The Boatman Call (1997), No More Shall We Part (2001) e Skeleton Tree (2016) – e neles percebemos um artista raro, que consegue passar a sensação de uma tragédia iminente, deste abandono terrível do qual, cedo ou tarde, o universo será o palco em nossas vidas.
A única diferença é que, se Kafka fez isso em contos e romances, Cave fala sobre o mesmo assunto em seus discos, na maioria gravados com a banda que o acompanha há mais de 30 anos, os Bad Seeds. Apesar de ser uma celebridade de rock, ele trata as suas canções como os poetas W.H. Auden e Frederico Garcia Lorca lidavam com os seus versos – ou seja, atento às minúcias e delicado nas metáforas, mas sem deixar de lado o gosto por imagens violentas ou então por um sentimento de desamparo que permeia suas melodias, sejam elas extremamente barulhentas ou extremamente suaves e etéreas.