Existe uma causa comum para todos os problemas do nosso país: da insanidade burocrática aos casos mais graves de corrupção governamental; do populismo barato da nossa elite política a uma imprensa que se vende aos poderosos em vez de fiscalizá-los. Não importa qual mazela nacional lhe venha a mente, toda ela, de alguma maneira, tem origem numa única e singela falha moral, que está presente em cada um dos episódios descritos a seguir.
Na eleição de 2004, José Serra assinou um documento, durante uma sabatina da Folha de São Paulo, que dizia que não deixaria a prefeitura, caso vencesse, para concorrer ao governo. Quinze meses depois de eleito, ele largou a prefeitura e se candidatou a governador. Quando questionado sobre o documento, disse que assinou apenas um “papelzinho”.
Em 2009, o STF votou contra a prisão em segunda instância. Em 2016, a Suprema Corte mudou o seu entendimento e votou a favor. Já em 2019, os ministros mudaram novamente o seu posicionamento e a prisão em segunda instância foi proibida num vaivém, no mínimo, contraditório.
Ainda sobre o STF: duas semanas atrás, os ministros decidiram que a lei das estatais é, sim, constitucional, mas que as indicações políticas feitas por Lula durante a suspensão da norma por Lewandowski, ainda que contrárias à lei, seriam mantidas. No judiciário brasileiro, não é a letra da lei que conta, mas sim um abstrato e cambiante senso de justiça.
No ano passado, o ministro da fazenda, Fernando Haddad, anunciou que o superávit de 2025 seria de 0,5% do PIB. Apenas 7 meses após a sanção do novo arcabouço fiscal, Haddad já mudou a meta e disse agora que o superávit ficou somente para 2026.
Réus confessos da Lava-Jato, que fizeram delações e assumiram a culpa e o pagamento de pesadas multas, pediram para rever seus processos. Alegam que foram coagidos a se incriminar e que suas palavras anteriormente proferidas não valem nada. O mesmo estratagema é usado por inúmeros criminosos todos os dias após confessarem seus crimes à polícia e serem orientados, por advogados, a mudar suas palavras perante o juiz.
Um jornalista famoso fez sua carreira batendo no PT, para, quase da noite para o dia, virar o maior defensor do partido. Anos de palavras escritas em revistas e faladas em vídeos deixaram de valer e de significar qualquer coisa.
Talvez já tenha ficado claro, com os exemplos acima, aquele que é o senhor de todos os males do Brasil e a maior chaga que uma sociedade pode ter. Esqueça a especulação sobre o determinismo geográfico como causa da pobreza no país, a explicação sobre deteriorização dos termos de troca ou a teoria da dependência. O Brasil é como é por um motivo que, à princípio, pode até soar banal: o desrespeito à palavra.
Isso porque o maior recurso natural de uma nação não é petróleo nem minério de ferro, muito menos ouro. O recurso natural mais precioso de um país é a confiança entre seus indivíduos. E a atomização da confiança é o respeito à palavra dita ou escrita: é a promessa cumprida; é a fé num contrato; é a segurança naquilo que é descrito nas leis; é a hombridade de não voltar atrás no que se disse devido ao medo de passar vergonha e de perder a dignidade diante dos outros, mesmo que seja um jornalista em busca de renda ou um criminoso que já confessou seu crime e que prefere cumprir sua pena a parecer um covarde.
Muitos dos que vieram antes de nós sabiam disso. Não foi à toa que John Adams, segundo presidente e um dos "pais fundadores" dos Estados Unidos, definiu uma verdadeira República como “o império das leis e não dos homens”. As leis são palavras escritas cujos poderes têm que estar acima do caráter sempre volátil das circunstâncias dos homens. Algumas culturas e crenças, como o bramanismo e o hinduísmo, chegam a conceber tanto poder às palavras que lhes atribuem propriedades mágicas. Mesmo nas línguas ocidentais mantemos vestígios dessa perspectiva.
Não é mera coincidência que, em inglês, a palavra “spell" signifique "soletrar" assim como também o substantivo “magia”, da mesma maneira que o nosso “encantar” contém o ato de pronunciar palavras como a causa da feitiçaria. A palavra, contudo, vai além e alcança o caráter divino para os cristãos: segundo o Evangelho de São João, "no início era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Quebrar uma palavra é, portanto, algo mais do que mero deslize de integridade: é uma forma de sacrilégio; é o pecado original que resultou no Brasil que todos nós conhecemos.
Não apenas no bramanismo e no hinduísmo a palavra tem valor. No judaísmo também. Um exemplo: em hebraico a palavra vida é "chai" (pronuncia rai). O numero 18 também se fala "chai". Por isso o numero 18, para muitos é sorte, e ao brindar falam "le chaim" A vida. Se a palavra de um homem (ou mulher) não vale nada, nada mais vale.
Este post é o que está entalado em nossas gargantas. Um grito lúcido de revolta!
O texto é perfeito e por favor, Renato Corrêa não entenda que estou acrescentando - longe disso.
Só quero confirmar a charge-cartoon ilustrativa, com a citação ainda do Evangelho de João: " Vós sois do diabo, que é vosso pai ... Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira."