#OsMortosDeMainardi
Seu novo livro é um quebra-cabeça documentado, um documentário literário que conta algo sobre todos aqueles que se mantêm vivos no próprio Mainardi.
Já comecei a escrever este texto algumas vezes. Nenhuma das tentativas eram semelhantes entre si, exceto pelo télos que a todas conectava. Essa será minha tentativa final. Se não funcionar agora, não funcionará jamais. Vou juntar um pouco de tudo o que escrevi anteriormente e fazer algo novo. Escrever é fácil, mas este texto tem sido uma tarefa difícil. Não por causa do Mainardi ou de seu livro. É culpa minha, admito. O livro não é o que eu esperava. E saiba como isso é bom!
No trabalho de pensar no que escrever, fui assistir ao Roda Viva que marcou o lançamento de A Queda, que era, até então, seu último livro. Ao responder a um dos participantes da bancada, Mainardi disse uma das coisas mais estapafúrdias que já o ouvi falar: que tudo o que ele escrevesse a partir de A Queda, seria um mero penduricalho. Que bobagem! Para piorar, deu a entender que sua queda seria seu testamento literário – que sandice! Entendo que Diogo acreditasse piamente que nada melhor sairia de sua pena após os 424 passos de Tito. Eu mesmo pensaria isso se fosse o autor. Entretanto, era óbvio que seus mortos não permitiriam seu enterro tão precocemente. Após os passos de Tito, nos faltavam as fotos de Nico. Após a queda, precisávamos de seu retrato.
Mainardi achou que nunca superaria A Queda e, por hora, acertou. Meus Mortos não supera porque é uma clara continuação – espiritual, é verdade. O estranhamento estético continua lá. A familiaridade com um desconhecido permanece a mesma. Seus filhos, inclusive, permanecem sustentando o livro. Enquanto Nico e Tito sustentam seus livros, descobrimos quem são os mortos que sustentam Mainardi.
A Queda foi o primeiro livro do Mainardi que li e por sugestão de um antigo colega de trabalho, o Diogo Chiuso (isso mesmo, o paspalho aqui do NEIM). Trabalhamos juntos em uma antiga editora e, durante uma de nossas muitas conversas – afinal, conversávamos mais do que trabalhávamos – ele deu um exemplo e o ilustrou usando A Queda. Quando terminou, pedi que explicasse com outro exemplo porque não conhecia o livro do Mainardi. Como viemos de um contexto intelectual parecido, ele entendeu meus motivos para evitar a produção do manhatazanna. Entretanto, mesmo entendendo meus motivos – quase injustificáveis – ele insistiu que eu lesse A Queda. Como o Chiuso sempre foi certeiro nas indicações de leitura, aceitei sem reclamar muito. A estranheza estética foi inevitável e quase me fez desistir. Por diversas vezes eu pensava que certos trechos poderiam ser desenvolvidos, mas eram sempre bruscamente interrompidos. Conforme a leitura foi caminhando, logo o estranhamento passou a fazer sentido. Mais do que isso, se justificou. Com a notícia do lançamento de Meus Mortos, claramente fiquei animado e, quando comecei a leitura, a surpresa: o mesmo estranhamento estético d’A Queda se repetiu, mas dessa vez eu estava preparado. Definitivamente não era o que eu esperava. Embora lembre uma história em quadrinho, o livro está longe de ser isso. Mainardi definiu seu livro como um quebra-cabeça. Confesso que gosto dessa figura. Entretanto, todo o clima do livro se assemelha bastante a um documentário: a curiosa documentação de um quebra-cabeça.
Mainardi diz que escreveu um livro sobre seus mortos e usa Tiziano como fio condutor. Discordo dele. Meus Mortos é um quebra-cabeça documentado, um documentário literário que conta algo sobre todos aqueles que se mantêm vivos no próprio Mainardi. Tiziano, por exemplo, nunca foi alvo do meu interesse. Conhecia umas poucas de suas obras, mas meu horizonte de interesse nunca o contemplou. Bom, até começar o livro e ver Tiziano respirando, vivo, produzindo. Diogo não ressuscitou ninguém, ele simplesmente mostrou como todos os seus mortos, de Tiziano, Rubens, Isabel – esposa de Carlos V – até seu pai, mãe e irmão, todos estão vivos, ainda que estejam mortos. Se autorretrato não fosse o subtítulo, a volta – talvez a permanência – dos que não foram seria uma opção.
Mainardi me fez pensar sobre os meus próprios mortos. Não cheguei ainda a uma resposta exaustiva, menos ainda satisfatória. Cheguei, no entanto, a alguns possíveis candidatos à minha coleção particular de defuntos. Tolkien facilmente poderia ser meu Tiziano. Van Gogh e Willem van Herp também estão presentes. Chesterton e Eliot também encontram lugar na lista. Infelizmente alguns amigos já entraram nessa lista. Foi justamente nesse momento em que me afastei dos meus mortos heróis e fui de encontro aos meus mortos amigos que percebi: diferentemente dos mortos do Mainardi, os meus morreram e permanecem mortos. Por não dedicar pensamentos suficientes aos meus mortos, acabei por matá-los novamente.
Em Meus Mortos não há lição de moral alguma. De fato, as melhores obras não precisam disso. Afinal, a vida não tem lição de moral alguma, tem? Prova maior disso é o “felizes para sempre” de Mainardi ser uma decrépita bunda branca encarando o leitor e rogando para ser a última memória de seus descendentes. Não é, de modo algum, o que eu esperava. No final das contas, essa imagem fez com que eu tivesse uma dificuldade danada pra escrever este texto.
O que falar depois da bunda do Mainardi, leitor? Me diga?
Eu disse que esse livro não tinha uma lição de moral...
Nota do editor: Para ver a bunda do Mainardi é preciso comprar o livro. Aproveite a promoção na Amazon.
________Meus mortos: um autorretrato
Diogo Mainardi
Ed. Record, 2025
288 páginas
________A queda: As memórias de um pai em 424 passos
Diogo Mainardi
Ed Record, 2012
150 páginas
Quem é Tito?