Moacir guardou no porta-luvas a Colt sem adornos, com silenciador, arma extra que quase sempre levava consigo, para caso de eventual necessidade. Então saiu do carro e pegou de volta, de dentro da lixeira, as outras armas. Amava a Browning como amava as suas guitarras, e conhecia quem poderia fazer bom uso da Walther de Maguila. Voltou ao carro e deu partida, agora com muita calma. Ainda tinha alguns minutos para decidir o que fazer com aquele cadáver gigantesco, enquanto dirigia para longe dali.
Todos se lavam no sangue do sol, pág. 39.
Assim começa o romance de estréia de Paulo Raviere, publicado em 2022 pela editora Darkside Books, especializada em livros pop de horror, crime verídico e cinema. Todos se lavam no sangue do sol é um romance enxuto, mas carregado de significados interessantes, que são ainda mais ressaltados quando lemos o livro uma segunda vez.
Em primeiro lugar, o romance é, para todos os efeitos, policial. Envolve uma constelação de personagens que giram em torno de um fatídico assalto a uma joalheria no centro de Salvador, na Bahia. A partir disso, e ao longo de cinco capítulos, Raviere vai e volta no tempo, e cada capítulo assume um personagem diferente como protagonista. Essa fragmentação temporal, somada a um relato prismático dos eventos em questão, além da própria temática criminal tratada não só com violência estilizada, mas com uma certa verve pop (complementada pelas maravilhosas ilustrações do quadrinista Alcimar Frazão) trazem à mente os filmes de Quentin Tarantino, em especial Cães de aluguel (Reservoir Dogs, 1992) e Pulp Fiction: tempos de violência (Pulp Fiction, 1994).
Raviere esmiuça cada um de seus personagens com esmero. Todos possuem seus próprios estilos de fala, além de uma rica vida interior e psicológica. Mesmo o assaltante mais rastaquera, ou adolescente mimado, possuem sua própria densidade dramática. Muito disso é realizado pela própria voz do narrador em 3ª pessoa, que analisa os seus personagens e entra em ricas digressões sobre o cotidiano da cidade de Salvador. Inclusive, como é digno de muitos romances do tipo, a cidade se torna um personagem, um labirinto urbano que representa os diferentes caminhos do destino, colocando esses diferentes personagens, improváveis, em encontros inusitados e surpreendentes uns com os outros.
É interessante como Raviere organiza esses diferentes personagens nesse labirinto vivo que é a cidade de Salvador. Compreendo que ele faz isso em dois níveis diferentes. Primeiro: todos os personagens, de uma forma ou de outra, buscam uma forma de libertação. Essa é tanto uma libertação das circunstâncias materiais e imediatas que os cercam, quanto é, possivelmente, uma libertação metafísica, existencial. Seja na figura de Ernesto, de Moacir/Bob, do senhor Benedictus e, claro, na enigmática Stéphanie - a femme fatale da trama.
A busca por liberdade possui um longo histórico nas artes brasileiras, em especial a partir do Modernismo, mas que ganha especial força no Cinema Novo. Nos filmes de Leon Hirzman, Joaquim Pedro de Andrade e, principalmente, Glauber Rocha, vemos como estes cineastas - em especial o último - organizaram alegorias em suas obras, alegorias estas que viam, nas palavras de Ismail Xavier, a “história como teleologia”, que “assume o tempo como movimento dotado de razão e sentido, supõe o caminhar rumo a um telos” (Alegorias do subdesenvolvimento, pág. 12). Apesar do caráter nitidamente de esquerda dessas obras, que colocavam a Revolução como horizonte de liberdade (o telos da História), Xavier percebe que há um fundo mítico, distintamente cristão nas obras de Glauber, e em nenhum outro filme, que não Deus e o diabo na terra do sol, isso se organiza tão plenamente.