A evidência principal de que ninguém mais se importa para o jornalismo cultural brasileiro é o caso, noticiado pela Folha de S.Paulo, do repórter do jornal que foi vetado na coletiva de imprensa de Anitta, a “cantora-funkeira-celebridade-empresária-que-adora-aparecer-peladona-no-Oscar”.
Enfim, a se considerar a música que canta, seu nome poderia ser legião.
(O leitor delicado do NEIM imaginava o quê? Condescendência? Foi esse tipo de tratamento bovino com a suposta classe artística que nos trouxe até aqui. Mas, como sempre, divago).
Sim, o assunto parece menor, e é, mas o berro da manchete parece que se trata de coisa grave, gravíssima:
Anitta barra repórter da Folha em entrevista coletiva do álbum 'Funk Generation'
OUTRO LADO: Assessoria de imprensa da cantora disse que não havia barrado todo o jornal, mas um profissional específico
Assim como o estagiário aqui, o leitor ficou sabendo do lançamento do novo álbum (sic) da Anitta graças a esse veto (ao que parece, um veto muito mais importante do que o de Rodrigo Pacheco a cerca da desoneração salarial que Lula impediu entre uma pinga e outra).
Quem sabe isso não seja uma estratégia de divulgação, destacando como a cantora é bad ass (and what an ass!), mas daí estaríamos esperando demais das empresas que administram a carreira dos supostos artistas brasileiros. Seja como for, o jornal levou a sério, a ponto, como consta acima, de utilizar o recurso do “Outro Lado”.
Se o jornal está levando o tema a sério, por que o estagiário do NEIM vai ignorar? Então, vale o mergulho na longa jornada noite adentro do texto - ou seja: é hora de ativarmos o tradutor de lero-lero:
A cantora Anitta, por meio de sua assessoria de imprensa, barrou a participação de um repórter da Folha na entrevista coletiva que fez para divulgar seu novo álbum, "Funk Generation", no início da tarde desta sexta-feira.
Em conversa por telefone com a reportagem, a agência BPMCom, que representa a artista, disse que não havia barrado o jornal, mas um repórter específico. A empresa não quis enviar um posicionamento por escrito.
Esses primeiros parágrafos são a mais perfeita tradução do que se tornou o jornalismo brasileiro, cheio de penduricalhos e salāmu ʿalaykum aos ídolos de barro da cultura pop. O fato da funkeira sequer ter se dignado a se comunicar com a reportagem mostra de quem, de fato, detém o poder. Ao mesmo tempo, o modo como a Folha informa aos seus leitores de que foi ignorada sem qualquer deferência só não é mais vergonhoso do que o trecho “por meio de sua assessoria de imprensa” – simbolizando assim a morte lenta do texto no jornalismo brasileiro.
Mas por que Anitta barrou o jornaliste da Folha?:
A justificativa foi que o jornalista em questão teria incomodado Anitta ao entrevistar a cantora em janeiro. Na entrevista, a artista discutiu sua carreira, seus posicionamentos políticos e se irritou com uma pergunta que envolvia Ludmilla.
Ludmilla se apresentaria no Coachella, o mais importante festival de música dos Estados Unidos e onde Anitta tinha feito um show em 2022. A pergunta se referia à participação de brasileiros no evento e a entrada do funk no mercado estrangeiro.
Para quem não sabe, como era o caso do estagiário do NEIM até alguns minutos, Anitta e Ludmilla disputam o mercado de atenção do cenário pop brasileiro – num duelo que só não é surdo porque o público, infelizmente, é obrigado a ouvir a música praticada pelas duas. É um duelo no estilo Cristiano Ronaldo vs Lionel Messi para saber quem é o melhor – no caso das cantoras, quem tem mais relevância na música pop nacional (e, como diz o texto da Folha, internacional).
Há alguns anos, o fato da Folha ser barrada num evento como esse seria motivo de reação indignada da opinião pública nacional. Haveria, mesmo, até que aventasse para a hipótese de censura. E, no final, a celebridade em questão teria de recuar – pedindo desculpas à imprensa, afirmando que crê nos valores da liberdade de expressão e no jornalismo como farol da democracia.
Mas a verdade é que nada disso aconteceu porque o veto de Anitta (que, repito, tem mais poder do que o veto de Rodrigo Pacheco) se estendeu para toda a imprensa brasileira:
Nesta sexta, um outro profissional do jornal foi aceito na entrevista coletiva, que aconteceu por videoconferência, com a entrevista já em andamento. Anitta também não aceitou um pedido de entrevista individual, com nenhum jornalista.
A cantora também vetou a audição antecipada do disco por representantes da imprensa brasileira para a publicação de uma crítica. O acesso a filmes, séries, peças e álbuns musicais antecipadamente para a produção de reportagens e críticas é uma prática comum no jornalismo cultural.
(A pergunta que não quer calar é: será que Anitta está emulando o exemplo de Alexandre de Moraes?)
A opinião pública, se é que ela de fato existe, só ficou sabendo desse acontecimento porque o jornal o noticiou – e porque os jornalistas da Folha, justamente no Twixster de Elon Musk (deem risos, risos e muitos risos, por favor), fizeram muxoxo sobre a “indústria cultural controlar o que se diz sobre os artistas”. Waal, como diria Paulo Francis nessas horas.
Ninguém se importa com o jornaliste da Folha sendo barrado porque, a rigor, as notícias que o suposto jornalismo cultural produz não elevam a imaginação dos leitores; não instigam a curiosidade; e não celebram a manifestação artística como ato da criação. Em vez disso, sobram falsas polêmicas e tentativas fajutas de criar um ambiente de tensão permanente, pois, enquanto a imprensa discute Elon Musk, liberdade de expressão, Anitta, cultura woke e outros tópicos absolutamente irrelevantes para a sociedade, o único assunto sobre qual todo mundo comenta nas ruas é o preço absurdo dos itens dos supermercados.
O resultado? Nada mais simbólico do que o fato de a Folha de S.Paulo aceitar as migalhas de Anitta numa videoconferência. E, de quebra, ter reclamado que não conseguiu ouvir o disco com antecedência. Coitadinhos
Como se alguém realmente fosse discutir a obra da Anitta. Ou melhor: ouvir. Porque, se a Folha realmente fizesse o seu trabalho de reportagem investigativa, voltaria com fúria total ao fato de que, na verdade, a cantora supostamente manipulou os números do Spotify, lá no distante mês de Março de 2022, quando lançou a canção “Envolver” e se tornou a artista mais ouvida do streaming, com 6,4 milhões de reproduções em um único dia, manobrando os algoritmos e com uma “fazenda” de fãs que surgiram dos lugares mais inesperados.
Mas, não, nada disso, a Folha ficará calada pois o que aconteceu ontem, com o veto de Anitta, é que o jornalismo cultural (e, certeza, o jornalismo em si) morreu não com um suspiro, muito menos com um estrondo, mas com um perverso gemidão tocado em loop infinito em nossos ouvidos.
Anita (saudade do tempo em que era só remédio pra verme) parece ter criado a categoria política da “liberal com o toba, conservadora com a imprensa”.
Adorei a crítica. Me deleitei com o texto que descreve muito bem a pobreza musical e jornalística que nos assombram. Então, como dizem, rir é o melhor remédio. E eu ri muito. Este estagiário é foda! Traduz como ninguém o lero lero pseudo jornalístico do bananal.