Devo a Dona Antonina – a senhora que gentilmente cuida de minhas roupas e minha alimentação – a aventura que vivi nos últimos doze dias.
Não me lembro ao certo o porquê, comentei com Dona Maria Luísa – minha vizinha do andar de cima – que eu havia encomendado um dicionário de uma livraria portuguesa, mas acabei por nunca receber a obra, embora haja sido rigorosamente reembolsado.
A livraria é antiga e o sistema de correios da capital não é melhor que o da colonia. Dona Antonina, que desde a minha pequena intervenção cardíaca tem pernoitado em minha casa, sugeriu que eu buscasse o livro pessoalmente.
Ouvida a sugestão, não a respondi, tampouco a esqueci.
No dia seguinte, entretanto, perguntei ao meu médico, doutor Eusébio Rabaça, se haveria alguma contraindicaçao a uma viagem ao exterior. A resposta negativa seguida de um verdadeiro estímulo de meu esculápio, levou-me à compra dos bilhetes aéreos.
Sob protestos silenciosos de meu sobrinho, Luís Felipe, e de meus dois amigos, embarquei sozinho – soube que a doutora Helena, psicóloga, filha de Paulo e Dona Regina Fernandes, diagnosticou minha necessidade de solidão como necessidade de autoafirmar minha independência – e sozinho passei os últimos doze dias entre Lisboa e o Porto, com uma parada de vinte e quatro horas para visita ao santuário Nossa Senhora de Fátima.
O céu lusitano, a temperatura civilizada e o baixo risco de ser assaltado estimularam-me a longas caminhadas, como as que eu fazia com Maria Teresa, minha esposa.
Como sempre faço desde que a perdi, evitei todos os lugares em que já estivemos juntos, algo que, se por um lado reduz drasticamente minhas opções, por outro permite-me conhecer lugares novos.
Bebi – moderadamente – vinho nacional, comi e dormi muito bem, obrigado!
Em Lisboa, aproveitando que o alfarrábio fica ao lado da Casa Havanesa, comprei não só o dicionário de Camilo Casttello Branco como também algumas caixas de charuto, as quais dividi com Luís Felipe, Anselmo Gusmão e Paulo Fernandes, em compensação por terem se preocupado comigo.
Talvez a doutora Helena tenha razão; senti-me bem por saber-me capaz de ficar só, mas ainda melhor por saber que não sou só: a melhor parte de viajar continua sendo voltar para casa.
Post scriptum: Aos assinantes do NEIM que gentilmente leem meus textos, meu muito obrigado pelas mensagens de preocupação no último sábado. Fiquei sinceramente tocado. Quanto ao estagiário mal-criado, não se preocupem que já o adverti a tratar meus leitores com o carinho que merecem.
Sensacional. Bernardo. Vou brindar sua peripécia solitária e seu benfazejo retorno com uma draft IPA da Dogma, aqui em Santa Cecília.
Textos como esse proporcionam alegria dupla: pelo conteúdo e pela forma. A língua vive! Nossa literatura anda tão pobre que dá a impressão que o português do Brasil agoniza. Obrigada, Bernardo Telles!