#Pertinências
Quando todo universo se torna pequeno diante das nobres e eternas lembranças
Quando completei quarenta e cinco anos de casado com Maria Teresa, passei a planejar as comemorações de nossas bodas de ouro. Imaginei uma missa em que renovaríamos os nossos votos, um jantar com nossos poucos amigos e familiares, além de uma viagem para a Sicília, que era seu lugar favorito.
No ano seguinte, contudo, Maria Teresa adoeceu e acabou por falecer dias antes de termos completado quarenta e sete anos de matrimônio.
Há alguns dias, Paulo Moreira Fernandes, um meu muito velho amigo, e sua esposa, dona Regina Fernandes, tiveram a felicidade de completar cinquenta anos de casados.
Paulo, sabendo-me amigo de alguns bons padres, incumbiu-me de organizar a missa de renovação de votos, o que, suspeito, fez antes em atenção a mim do que a ele mesmo.
Apelei ao padre Sebastião Faustino, que me atende em confissão quando peco e com quem, portanto, encontro com frequência.
A missa foi celebrada às dez da manhã do último sábado e contou com a participação de familiares dos Fernandes e, ainda, com Anselmo Gusmão, dona Rita Gusmão -- velhos amigos meus e dos Fernandes —, Luís Felipe, meu sobrinho, dona Antonina, a senhora que gentilmente cuida de minha roupa e minha alimentação, e Luísa Magalhães, uma minha vizinha que recentemente integrou-se ao nosso grupo.
Coube a mim a primeira leitura e à doutora Maria Helena Moreira Fernandes, psicóloga e filha única do casal, a segunda; a primeira narrou a criação do homem e da mulher; a segunda, foi da carta paulina sobre o amor.
Maria Teresa sabia de cor toda essa passagem da carta de São Paulo e gostava de repetir que a palavra caridade — que aparece em traduções mais fieis do grego — é ainda mais bela que a palavra amor.
Durante a cerimônia, Paulo chorou como chorou no dia do seu casamento; dona Regina manteve-se firme e elegante, como manteve-se em seu casamento e ao longo desses cinquenta anos, mesmo ao ter de enfrentar a pior dor a que uma mãe pode ser submetida.
À noite fomos a um jantar dançante belamente organizado pela doutora Maria Helena; bebemos champanhe e ouvimos jazz, blues e valsa, porque dona Regina fez questão de dançar.
Luís Felipe dançou com dona Antonina e dona Luísa Magalhães; dona Rita Gusmão não dançou porque o joelho esquerdo do Anselmo é mais enferrujado do que os carros de batalha do faraó que perseguiu Moises no Êxodo.
Quanto a mim, fechei meus olhos e dancei com Maria Teresa, dessa vez sob a lua da Sicília.
Lindo texto. Contém a força para nos levar à reflexão, cada um em uma direção. Arte.
Sempre inspirado. Cada texto é mágico e nos eleva. Flutuemos por bons momentos pois a vida tem sido dura.