#QuemPaga?
O som do dinheiro por trás do aplauso
Por Henrique Cavalcanti de Albuquerque*
É uma pergunta incômoda, mas sempre necessária: quem paga? Quando se observa uma bela obra de arte, essa pergunta geralmente não está presente. Afinal, diante de um arrebatamento estético de alto nível, por que se preocupar com as contas a pagar, no caso, do artista? Mas passado o efeito estético, a análise da obra em si vai terminar, cedo ou tarde, no problema: o artista fez esta obra para alguém? Em qual condição social ou política? Quem pagou?
Tomemos a Mona Lisa, um ícone do Renascimento e do talento assustador de Leonardo da Vinci. E ao mesmo tempo, um símbolo do poder do mecenato, ou seja, das grandes famílias burguesas das cidades italianas enriquecidas com o comércio no Mar Mediterrâneo que pagavam artistas para ter status social. O mesmo se pode dizer das belíssimas catedrais medievais, financiados muitas vezes por séculos pela comunidade de uma cidade, um enorme esforço coletivo e que é mostra do poder que a religião pode ter em uma sociedade, conduzindo o ser humano ao belo e ao transcendente. Mozart era um gênio de capacidades estéticas e técnicas que desafiam a lógica mas toda sua obra foi um esforço algo sórdido de enriquecimento de seu pai, que o explorou sem remorsos, expondo o filho prodígio para a nobreza.
Mas vamos divagar menos e rebaixar nosso senso estético. Vamos esquecer as sinfonias de Mozart ou os vitrais da Notre Dame.Estamos em um momento muito diferente, menos sublime e mais pantanoso, o Brasil do início do século XXI. Com alguns artistas de talento e outros que fingem ser. Mas a pergunta continua a mesma: alguém paga?
Na mesma semana, tivemos um exemplo quase didático da relação entre a arte e o seu financiamento. E como tais conexões, nem sempre muito transparentes aliás, afetam a política. No domingo, dia 14 de dezembro, houve um ato na Avenida Paulista e em Copacabana criticando o PL da Dosimetria, então aprovado pelo Congresso. Vozes que se consideram ativas pela democracia entoaram palavras de ordem contra o Congresso, em uma deliciosa e meio patética esquizofrenia política. E os nomes, previsíveis como um discurso de assembleia estudantil, estavam lá: Caetano, Gil, Chico Buarque, Lenine, Emicida, Zélia Duncan, entre outros. Destaco a quase vencedora do Oscar Fernanda Torres, aliás outro sintoma clínico de distorção da realidade: a mesma esquerda tão antiamericana celebra a quase vitória de sua artista militante na maior premiação da “terrível indústria cultural do Tio Sam”. E sua fala do alto do trio elétrico foi exemplar: “Nós ainda estamos aqui pelas florestas brasileiras, pelos direitos da mulher, pela democracia. Nós estamos aqui para acordar o Congresso, galera, eles não podem trabalhar para si mesmos. Ainda estamos aqui.”
“Ainda estou aqui”, o filme, não recebeu verbas da tão tristemente famosa Lei Rouanet, mas foi financiado por empresas privadas com fortes ligações com o Estado brasileiro, como Globoplay, que dispensa maiores comentários em suas relações público-privadas, e a produtora Video Filmes, dos irmãos Walter Salles e João Moreira Salles, herdeiros da fortuna do grupo Itaú. Capitalistas que seriam odiosos em outro contexto mas que foram adotados pela esquerda sem muitos questionamentos.
Estes artistas têm o direito de se manifestarem. Mas a pergunta sempre permanece: alguém questionou quem pagou o carro de som?
Vamos para outro lado do espectro ideológico. Poucos dias antes, dia 12 de dezembro, em festa com pompa e circunstância, foi inaugurado o canal SBT News. E quem estava lá, com um discurso igualmente previsível de “defesa da democracia”? Alexandre de Moraes. Nem é necessário falar do presidente Lula, que a essa altura do jogo político brasileiro, parece mais um fantoche sendo levado pra lá e pra cá do que um indivíduo real. Mas chamou a atenção a reação de outro artista: no dia seguinte ao domingo da manifestação de esquerda no Rio e em São Paulo, e poucos duas depois da inauguração do canal de TV, Zezé de Camargo posta um vídeo bastante incisivo, mas com muita elegância aliás, criticando abertamente a presença de certos indivíduos na festa e argumentando que, segundo ele, tal presença era contrária ao que ele mesmo pensa sobre política e que o finado Sílvio Santos também pensava. E usando uma palavra mais forte, arrematou: “acho que vocês estão, desculpem, se prostituindo”.
A polêmica pode ser entendida apenas como uma disputa entre esquerda e direita mas aqui vale a pena voltar à questão inicial: quem paga?
Quando Zezé de Camargo sugere que seu especial de Natal não deveria ser levado ao ar pelo SBT por não concordar com a presença de certos indivíduos em uma festa para lançar um canal de notícias, quem paga o prejuízo é ele mesmo. Contratos publicitários já estavam assinados e se, de fato, com anunciou o canal, o show já gravado for cancelado, o cantor sertanejo certamente terá algum prejuízo financeiro. E é no meio de sua declaração que se extrai a seguinte frase: “Eu vivo e dependo do povo brasileiro”. Não é uma mera retórica, é fato concreto.
O interior brasileiro e seu agronegócio é odiado abertamente pelas elites sofisticadas das cidades. Há uma antipatia quase visceral: tudo o que é agro é visto como retrógrado, destruidor de florestas, assassino de indígenas, usuário de agrotóxicos. É quase uma reedição algo patológica da visão que muitos no início da República tinham do sertão e que foi eternizada na obra de Euclides da Cunha. Ele mesmo, um positivista que só via atraso na mentalidade sertaneja mas que teve uma imensa crise ética em acompanhar o sangrento episódio de Canudos. Nossa esquerda Leblon não chega nem perto de uma crise ética. O sertão é atraso e ponto. “Nós ainda estamos aqui pelas florestas brasileiras” diz Fernanda Torres. A oposição floresta e agronegócio é explícita: somos os heróis do meio ambiente frente a esses monstros fazendeiros que querem, veja só que audácia, enriquecer produzindo comida. Por que não convidaram Greta Thumberg para a manifestação de Copacabana?
Para quem canta Zezé de Camargo e outros sertanejos? Para o público brasileiro. Ponto. Há poucas conexões com o Estado. No caso da música sertaneja, o enriquecimento das cidades do interior permitiu um mercado consumidor. É o bom e velho capitalismo em ação. O mesmo que gerou a Mona Lisa e as catedrais. E o mesmo que pode gerar produtos culturais sofisticados ou banais. Ou uma mistura dos dois, já que o senso estético é sempre mais complexo do que pensamos. O que interessa neste episódio didático das transformações brasileiros dos últimos vinte anos é observar, com aguda sensibilidade, a temático do “quem paga”. A música sertaneja brasileira é paga em sua maioria pelo mercado consumidor, portanto privada. O cantor Zezé de Camargo pode expressar sua opinião sem medo. Suas contas são pagas pelo seu trabalho e seu público provavelmente vai concordar com tais posições. E se discordar, o problema é dele mesmo. Já a imensa maioria dos artistas que estavam gritando pela democracia são ligados de forma visceral ao governo: Gil e seu show de despedida patrocinado pelos Correios, que, como sabemos, é uma estatal sem nenhum problema financeiro. Caetano Veloso que teve sua turnê patrocinada pelo Banco do Brasil, que pelo jeito vai ser chamado para financiar, ora quem diria, o rombo dos Correios... quem paga? Resposta direta: o governo de plantão. Simples assim. A conclusão é evidente demais: Zezé de Camargo expressou sua opinião pelo simples fato de que pode pagar por ela. O mercado lhe deu a liberdade de expressão. A esquerda estética está tão ligada a um sistema de financiamento estatal que precisa brigar para manter esse sistema no poder. Um, expressa o que pensa e pode pagar por isso. Os outros, expressam quem paga.
Quando Mozart fazia suas obras, ele tinha que obedecer a certos padrões estéticos pré-determinados mas mesmo assim sua imensa criatividade lhe permitia espantar seu público. E esse público, altamente versado em música, tinha plena consciência do talento e das transgressões do artista. Havia uma delicada e fascinante relação entre transgressão e obediência, arte e dinheiro. No Brasil do sucesso do agronegócio e dos músicos sertanejos que tão bem expressam essa nova realidade social, a liberdade vem do sucesso comercial e dos novos meios de divulgação da música, não dependentes dos poderes tradicionais de empresas com contratos publicitários milionários com o governo. A velha esquerda odeia o agro e sua música pelo simples fato que ambos provam o que ela combate: trabalho e riqueza geram liberdade. Para Chico, Caetano e outros, é um mundo espantoso ao qual eles não se acostumaram. E se entendermos os gritos de “Congresso inimigo do povo” e “contra a anistia”, vão encerrar suas carreiras ainda colados ao governo, talvez porque público eles já não tenham mais.
Henrique Cavalcanti de Albuquerque é graduado em História pela USP e mestre em História da Cultura pela PUC SP. Professor de Relações Internacionais na Anhembi Morumbi e autor de Política Externa Brasileira e Uma História do Brasil, Trajetórias e Sentidos, ambos pela editora Freitas Bastos.





Bom texto. Somente acrescento que os chamados sertanejos fazem shows pagos por prefeituras Brasil a fora
Concordo com o artigo quando diz "trabalho e riqueza geram liberdade". Como esse pessoal depende em grande parte de verbas públicas, é normal que defendam os que controlam essas verbas e ataquem quem não depende delas.