Estava ainda ontem observando o Tristram a arruinar mais um de seus brinquedos caninos enquanto refletia sobre as contradições humanas. De súbito, lembrei-me de uma historinha deveras pitoresca que me pareceu interessante partilhar com os leitores desta insigne publicação.
Não lembro, no entanto, a sua fonte. Se li em algum livro ou ouvi em algum lugar já não mais me recordo.
A protagonista era a Ritinha rendeira, que tinha esse nome não porque rendasse, mas porque vivia de renda, enviuvara moça de um português imigrado do Minho, o Seu José Paulo.
Ninguém sabe direito o porquê de Seu Zé Paulo ter ido parar em Tauá, cidadezinha do interior do Ceará. O fato é que lá se estabeleceu, comprou imóveis para arrendar e montou uma bodega que logo ficou famosa pela fartura de produtos.
Cachaça, fumo, café; macaxeira, arroz, feijão; faca, punhal, pólvora e bala de revólver; doce, pião e bodoque, tudo isso e muito mais se encontrava na bodega do Seu Zé Paulo.
Empregou como ajudante e atendente o Dimas, vaqueiro que teve de largar as vacas a mercê de ter agarrado um coice de mula que o aleijou.
Dimas era pai solteiro de Ritinha (uns dizem que Ritinha nem era filha dele porque era mulato e a menina branquinha do olho claro).
Depois da escola, Ritinha ia à bodega a pretexto de ajudar o pai, mas o que queria mesmo era ganhar os doces que Seu Zé Paulo lhe oferecia.
Quando tinha já uns quatorze anos, parecia mulher feita e sabia disso. Arranjou uma sucessão de namoradinhos com quem vivia aos amassos, fosse de dia, fosse de noite.
Seu Zé Paulo alertava Dimas, dizendo que a menina iria embarrigar e que ele teria mais uma boca para alimentar. Dimas, resignado, respondia sempre:
— Essa daí é feito a mãe. Tem coração, mas não tem juízo. Se embarrigar larga o filho com o pai e cai no mundo.
Seu Zé Paulo dizia que ela precisava de se casar; ter uma casa para cuidar, ao que Dimas respondia que era difícil arrumar marido com a reputação que ela já tinha angariado.
Um dia Seu Zé Paulo tomou coragem e disse que se casava com ela se ela quisesse. Dimas se animou, mas suspeitou que a filha criaria caso, afinal Seu Zé Paulo já tinha quase cinquenta anos, e o que tinha de fortuna e barriga lhe faltava em dentes e cabelo.
Para surpresa de Dimas, Ritinha aceitou animadíssima o matrimônio, ainda mais que Seu Zé Paulo antes de propor o casamento propôs que o enxoval fosse comprado por ela em Fortaleza.
Como Ritinha tivesse ainda quatorze anos, decidiriam que ela viveria amigada com Seu Zé Paulo até completar dezesseis, quando então poderiam se casar.
Dimas ficou receoso de o português faltar com a palavra, usar a menina e depois abandoná-la, mas Ritinha não teve medo.
No sábado seguinte ao do aniversário de dezesseis anos de Ritinha, casaram-se na Igreja e no cartório.
Compareceram o prefeito, o delegado, o tabelião, o farmacêutico, o médico, doutor Cabral, alguns fazendeiros e alguns frequentadores da bodega.
Seis meses depois do casamento, Dimas morreu dormindo. O povo todo disse que o infeliz ficou tão tranquilo de ver a filha arranjada que acabou esquecendo de acordar...
Não tendo outro jeito, Ritinha tomou a pulso a bodega. Cobrou dívidas, limitou o fiado, negociou com fornecedores; quanto aos imóveis, mandou pintar, dedetizar e aumentou os valores das rendas.
Em três anos, Seu Zé Paulo já tinha outras três casinhas de aluguel e já não se preocupava com a bodega que faturava como nunca, e tinha um gerente, o Seu Mauro, e uma atendente, a mulher do Seu Mauro.
Ritinha encheu Seu Zé Paulo de dinheiro, de cuidados e de chifres. Os cuidados, mais do que o dinheiro, faziam com que ele ignorasse os chifres e seguisse vivendo feliz.
Viveu feliz até que morreu. Uns quinze ou vinte dias depois de seu aniversário de setenta anos, almoçou arroz, feijão gordo e lombo de porco, bebeu duas doses de cachaça e foi se deitar. Sofreu apoplexia estomacal e morreu.
Ritinha sofreu e chorou muito. Chorou tanto quanto havia chorado quando seu pai morreu. Vestiu luto por um ano e desde este ano foi fiel.
Terminou seu caso com o cabo, despediu, inconsolável, o chefe de gabinete do prefeito e devolveu os presentes que, junto com os beijos, havia recebido do tabelião.
Seguiu trabalhando. Passou a construir casinhas para venda e outras, mais simples, para locação. Fez fortuna e deixou de ser Ritinha para se tornar Dona Rita.
Construiu um mausoléu, o maior da cidade, para seu finado marido.
Encontrou-se uma última vez com o tabelião, mas só para fazer seu testamento: a bodega ficou para seu Mauro e esposa; as casinhas alugadas, para os inquilinos; o dinheiro e o resto dos bens, deixou ao município de Tauá com encargo de construírem escola infantil e um hospital.
Dona Rita morreu velha e foi enterrada com comoção no mausoléu do Seu Zé Paulo.
No meio tempo em que escrevi este texto, Tristam arruinou mais três de seus brinquedos. E eu espero que a história de Dona Rita tenha entretido você, nobre respeitável leitor.
Bernardo, grato por compartilhar a historinha de dona Rita. Até me esqueci de Lula e do ano de 2024 do nosso Senhor.
Estou encantada com Tristam, a musa. Obrigada, Bernardo, por lembrar-me como é agradável o português bem escrito!