#SãoTantasDúvidas
A imprensa tem muitas dúvidas sobre a anistia, mas nem todos conseguem formular as próprias perguntas
A gente sempre imagina que uma das principais habilidades de um bom jornalista é fazer perguntas. Não só aos entrevistados, mas aos fatos e a suas próprias conclusões quando analisa os fatos. Sem ter dúvidas próprias em sua cachola, sem duvidar inclusive de si mesmo, o que é um jornalista? Talvez, se torne um papagaio, um replicador de perguntas ou narrativas de autoridades públicas. Ou podem acabar servindo como instrumentos de propaganda de governo.
No Estadão, Eliane Cantanhêde considerou bastante apropriada a pergunta “sugerida” por um dos onze ministros do STF, que, junto com o laquê, parece moldar sua cabeça.
Bem, se invadissem minha casa e fizessem tudo isso, eu ia querer ver os safados esfolados vivos. Por isso, aprecio aquela coisa chamada Estado de Direito, mesmo quando é capenga. Gosto das leis porque, em situações como essas, elas me impedem de dar vazão aos meus impulsos mais primitivos.
Mas a Cantanhêde continuou: “os desordeiros fizeram no 8/1, invadiram, atacaram, quebrando tudo o que viam pela frente no Planalto, STF e Congresso, para derrubar a ordem constituída e tomar o poder à força”.
Então, passemos por cima das leis e façamos como a Rainha de Copas: cortem-lhes as cabeças! Depois, a gente sabe que o Rei de Copas vem e fica tudo certo e nada resolvido.
Talvez, Cantanhêde não saiba que, há tempos atrás, torturadores e assassinos que queriam derrubar a ordem constituída também foram beneficiados com a anistia.
Depois daquele lencinho, que trouxe de volta grandes líderes políticos e livrou da cadeia jovens idealistas e promissores, vieram a revogação da Lei de Segurança Nacional, as "diretas já", a constituinte, a primeira eleição direta para presidente... até a eleição de FHC em 1994 e a de Lula em 2002. Com eles, os anistiados assumiram o poder. Avanços enormes, gigantescos, mas a anistia não foi concluída.
Ah! Ela sabe sim. Vejam ali, “jovens idealistas e promissores”… Apreciou os resultados positivos da anistia que também anistiou assassinos e torturadores. Autoridades que abusaram violentamente do poder e militantes de esquerda que recorreram à luta armada para resolver tudo com mais violência, todos queriam arrebentar com tudo. Todos eles foram beneficiados. Em 2004, a Cantanhêde adornava sua cabeça com Márcio Thomaz Bastos.
Ah! Mas lá os militares assumiram depois de um golpe, transgrediram e mudaram leis para subir e se manter no poder.
Eu não sou jornalista. Sou uma pessoa limitada. Com um raciocínio bastante duvidoso e lento. Mas tenho perguntas que minha própria cachola se faz. Para muita gente não foi exatamente isso que o PT fez nas últimas duas décadas? Subverteu o Estado, transgrediu e mudou leis para se manter no poder para sempre? Será que Boçalonaro, seu golpe e seus fanáticos não são somente uma consequência das duas décadas de governo petista? São tantas dúvidas.
Como tudo na política, nada é tão preciso assim. As perguntas e as repostas que eu arrumo para mim mesmo nunca são suficientes.
Procuro, então, os jornalistas que fazem as próprias perguntas, que não são meros capachos. São aqueles que só receberam um WhatsApp da justiça quando receberam uma intimação, 24 horas antes do horário marcado para a oitiva, por terem publicado uma matéria jornalística normal.
A gente sabe que a pergunta não saiu da cabeça de um político ou ministro do STF (duas figuras que atualmente pertencem aos mesmíssimo balaio), porque é uma pergunta que jamais eles desejariam que fosse feita. Essas são as melhores perguntas.
Ao contrário do questionamento do ministro da corte reproduzido por Cantanhêde, vale a pena reproduzir as indagações de Sabino:
É impressão minha ou Lula foi ameaçado pelo STF? Se sim, eu me pergunto — e todos nós deveríamos fazê-lo, acho eu — se juízes poderiam ameaçar quem quer que seja desse jeito. Imagino que tal atitude esteja fora do campo da legalidade.
Já que acordei perigosamente indagativo, estendo as minhas interrogações: o que poderia significar, afinal de contas, a abertura de “uma grande crise” com o STF? Como cabe ao tribunal julgar ações de relevância político-administrativa, isso quer dizer que os ministros passariam a prejudicar propositalmente Lula, nos casos do interesse direto do presidente da República que estivessem em julgamento?
Aqueles que querem proteger o poder dos ministros do Supremo, em detrimento do próprio Supremo Tribunal Federal, desejam queimar os baderneiros de 8/jan em uma grande fogueira na praça dos Três Poderes.
Cantanhêde, por exemplo, parte do princípio que as pessoas - que não são jovens que ela acredita serem idealistas e promissores -, que não foram nem julgadas na instância correta da justiça, não podem ser anistiadas porque não pagaram o suficiente pelos seus crimes. Precisam sofrer mais.
Há outro jornalista, que também consegue formular as próprias dúvidas, que discorda da Cantanhêde. Se não tivesse mais nada de bom na anistia de 1979, só o Gabeira já me convenceria a gostar de anistia. Na GloboNews, diante do laquê e das caras e bocas indignadas de Cantanhêde, Natuza e Ana Flor, Gabeira – um anistiado que raciocina, não tem medo e nem precisa olhar no celular para expressar suas ideias – explicou:
Eu acho que a verdade é que a gente diz: ‘olha, você fez isso contra o país, você quebrou e tal’, isso não vai ficar assim por nada. Mas não tá por nada. As pessoas estão na cadeia. As pessoas acham que quem fez isso tudo não pagou nada, mas pagou muito. Eu conheço caso, eu estudo esses casos. A maioria das pessoas que falam sobre anistia no Brasil não conhece o que que está envolvido na vida real dessas pessoas. Eu conheço muitos e muitas pessoas que tiveram a vida destruída, entende. Eu conheço duas moças que estão dentro de casa com tornozeleira eletrônica. Tem uma delas, coitada, com problemas mentais. Ela não sabe nem o que é Estado de Direito. E dizem para ela que ela ameaçou o Estado de Direito. E ela falou: ‘Mas o que é isso?’. Ela não tem ideia e ela tá com a vida destruída.
Depois que Natuza Nery quis distorcer o projeto de lei, dizendo que até os que cometeram atos terroristas estariam anistiados, Gabeira a corrigiu, retomando o parágrafo quarto do artigo primeiro da lei que deixa bastante claro, que a anistia não compreende a prática de crimes contra a vida, contra a integridade corporal, de sequestro e de cárcere privado. Comecei até a achar que essa é uma anistia até melhorzinha do que a de 1979…
Para aqueles que imaginam que quem é a favor da anistia é automaticamente a favor de Bolsonaro candidato, é preciso lembrar que Bolsonaro está inelegível. E não é por causa do golpe, nem por ter sido o mentecapto da pandemia. Está inelegível por abuso de poder político, por causa da reunião com embaixadores onde ele fez o que muito ministro do Supremo tem feito no exterior: colocou em dúvida o sistema eleitoral e de justiça do país.
Tenho muitas dúvidas sobre muita coisa, mas não tenho dúvida nenhuma na hora de escolher quais perguntas eu escolheria para adornar minha cabeça se fosse jornalisto.
Tenho dúvidas sobre a anistia. Não me parece justo que algumas pessoas arquem sozinhas e de forma desproporcional pelos atos impensados de certos generais e do capitão cabeça de papel que nos governou. Também carrego inúmeras dúvidas e certezas sobre os ministros do STF, assim como certezas incontáveis e poucas dúvidas sobre Lula e Bolsonaro. Tenho a impressão de que aqueles que não questionam nada - nem mesmo a anistia - e os que intimidam quem ousa questionar acabam reproduzindo o mesmo tipo de autoritarismo, votando no mesmo tipo de gente. A diferença entre esses dois grupos está apenas no grau de submissão miserável a que cada um se entrega.
Texto brilhante!
A véia do disjuntor...