O brasileiro, que já sofre de diferentes males, acordou no último domingo com a triste notícia da perda de Hermeto Pascoal (1936–2025). Esse alagoano de Lagoa da Canoa deixou o sertão e a vida rural para se tornar, nas palavras de Ted Gioia, o homem mais musical do mundo. Para nossa felicidade, tivemos entre nós, por 89 anos, a presença do Bruxo, apelido carinhoso que o acompanhou por décadas a fio.
Estrábico e albino, a vida na roça, sob o sol quente e brilhante, fez com que se isolasse na infância, dedicando-se à música. Seguindo os passos de seu irmão mais velho, aprendeu a tocar no acordeão que era de seu pai; porém, sendo autodidata, explorava diferentes sons e tons musicais, como por exemplo improvisando o som de flauta em um cano de mamona. Ainda adolescente, foi para Recife e, junto com o irmão, passou a tocar na rádio. Tímido, recebeu ajuda de Sivuca (1930–2006), maestro e diretor musical, que logo percebeu o grande talento de Hermeto. Casou-se cedo e logo desceu para o Sul: primeiro o Rio de Janeiro e depois São Paulo, onde o mercado musical e de trabalho era promissor.
Do rádio foi para a televisão e, dos Festivais de Música da Record, chegou em 1970 aos Estados Unidos, onde conheceu Miles Davis (1926–1991) e participou da gravação do álbum Live/Evil. Mesmo com uma participação secundária, deixou uma impressão marcante entre os demais pianistas presentes no estúdio. Estamos falando de Keith Jarrett, Chick Corea, Herbie Hancock e Joe Zawinul, como bem apontou, em artigo recente, Ted Gioia.
Alguns anos depois, já em seu retorno ao Brasil, tive o privilégio de conhecê-lo. Eu produzia e apresentava o FICO – Festival Interno do Colégio Objetivo – e ele aceitou participar do corpo de jurados juntamente com Rita Lee, Guarabira, Netinho, Sergio Hinds e outros músicos, além dos professores da escola. À época eu não tinha noção do monstro com quem estava conversando, mas o que me marcou foi sua humildade e mansidão. Creio que sua percepção pessoal do talento que carregava lhe dava a perspectiva correta de sentido e significado para a vida, resultando em uma autoestima mais que bem resolvida.
Foi com essa mesma segurança e inventividade que sua carreira internacional explodiu, fazendo sucesso aqui e lá fora. O Bruxo lançou mais de vinte álbuns e mostrou que música se faz com alma, enquanto os instrumentos a natureza fornece.
Hermeto chegou a compor músicas baseadas em datas, usando e associando números a notas musicais. O Calendário do Som traz 365 peças, uma para cada dia do ano, servindo para homenagear os aniversariantes do mundo inteiro. A pedido, incluiu uma peça complementar dedicada ao dia 29 de fevereiro dos anos bissextos.
Estava em turnê pela Europa quando passou mal, precisando retornar ao Brasil. Internado há 15 dias no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, foi vítima de complicações respiratórias que lhe roubaram o sopro da vida e da música.
A morte de Hermeto Pascoal, em 13 de setembro de 2025, encerrou um arco criativo de quase nove décadas, iniciado em sua infância albina no sertão e encerrado no reconhecimento mundial. Sua trajetória é lembrada como uma sinfonia ininterrupta, na qual a segunda data, desta feita a de sua partida, pode ser vista como sua última nota, ou talvez como sua última sinfonia: o silêncio que sucede uma vida inteira dedicada a transformar tudo em música.




Sou músico de formação, e tive no Hermeto um dos meus pontos cardeais, não sei se o Norte… Ele era música em estado bruto, o improviso como a vida é. Já produzi de sertanejo a jazz, tudo com muito prazer e alegria. Hermeto me ensinou a amar a música incondicionalmente. Quero dizer que não estou triste, mas tem uma melancolia que vai demorar um pouco pra ir embora. Vá em paz mestre!
A primeira vez que vi Hermeto foi tocando piano no Lancaster, casa noturna localizada na parte de cima de uma loja de tecidos finos na rua Augusta, em São Paulo. Foi quando ele veio para cá. Início da década de 60. Era conhecido por Sivuquinha. Estive com ele várias outras vezes e conversamos muito. Sempre sobre música. Era alegre, divertido e brincalhão e se manteve assim. Se tivesse ficado nos Estados Unidos, hoje seria milionário. Mesmo com mais de 70 anos de atividade ininterrupta, não acredito que Hermeto possa ser considerado rico. E não que fosse esbanjador. Não era. Apenas vivia com conforto. É este país que não dá valor a seus talentosos artistas. Se for feita uma pesquisa, duvido que mais de 2% dos brasileiros sabem quem foi e o que fez Hermeto Pascoal. Sou também da área musical, agente/produtor da Banda Mantiqueira, grupo paulistano, desde sua formação, em outubro de 1992. Está em atividade constante, toca pelo menos uma vez por mês, há 33 anos. Excursionou pelos Estados Unidos com a Osesp - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; fez apresentações na Argentina, Colômbia, Uruguai, Alemanha, Holanda e Portugal, sempre em palcos nobres. E em quase todos os estados do Brasil. Gravou 7 cds, 3 deles com a Osesp. Foi nominada ao Grammy e ganhou o Grammy Latino. Nunca fez apresentações na TV Globo, Record e SBT. Hermeto também poucas vezes ou nenhuma talvez, apareceu em algum desses canais de televisão. No caso da Banda Mantiqueira, se for feita uma pesquisa, tenho certeza de que menos de 0,00005% sabe da sua existência. Vou aproveitar, ao mesmo tempo em que faço o oportuno merchandising, e convidar o Wolney para assistir ao concerto que a Banda Mantiqueira fará no dia 17 de outubro, na Casa de Francisca, rua Quintino Bocaiuva, 22, a poucos metros da Praça da Sé. Demais leitores do NEIM também estão convidados. Garanto que valerá a pena.