[Leia a segunda parte do ensaio]
O Homem sem Medo e seus símbolos
“A triste verdade é que a verdadeira vida do homem consiste
em um complexo de oposições inexoráveis — dia e noite,
nascimento e morte, alegria e miséria, bem e mal.
Nós não sabemos qual vai prevalecer sobre o outro,
se o bem vai superar o mal, se a alegria vai superar a dor.
A vida é um campo de batalha. Sempre foi, sempre será;
e se não fosse, a existência iria acabar”.
–Carl G. Jung, O Homem e Seus Símbolos
Uma das características dos filmes noir é que os seus elementos não são necessariamente literais. Eles representam o estado mental do protagonista, ou aquele que o autor quer sugerir ao espectador. A imagem está cheia de sobras; talvez de fato elas estejam lá; o certo é que alguém está enxergando-as.
Esse é um dos sentidos em que o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson pode ser considerado noir. Os desenhos não estão lá para representar a realidade. Estão lá para sugerir algo, de forma mais ou menos sutil.
Por exemplo, nessa página de Daredevil #181, a garrafa foi desenhada de forma evidentemente desproporcional: mais parece um galão de água.
Isso, no entanto, tem um evidente propósito narrativo: ela está posicionada no canto superior esquerdo da página, que é onde o leitor começa a leitura. Assim, o seu tamanho desproporcional faz com que ela influencie a interpretação do leitor para o resto da página. Ela não é coerente com a realidade, mas com a importância da bebida no comportamento do Mercenário naquele momento.
Da mesma forma, no primeiro quadrinho de Daredevil #184, a boca do personagem é tão desproporcional em relação ao garfo que esse mais parece um palito. Ela também está cheia de dentes. Não contei quanto eles são, mas apostaria que isso não corresponde a uma arcada dentária humana normal. Assim, no entanto, Miller e Janson sugerem que o personagem é um predador.
Por outro lado, entre os exemplos menos sutis, temos a cela do Mercenário conforme ela aparece em Daredevil #181. Perceba como ela não tem paredes, banheiro, cama, nada: apenas grades. Isso é assim porque ela é apresentada conforme o Mercenário a enxerga: como uma jaula.
Consigo imaginar três motivos para que isso seja assim. Em uma ordem de mais a menos cínico, o primeiro motivo seria a limitação técnica do próprio Miller. Pra ficar nos dois exemplos mais evidentes: as suas figuras humanas frequentemente parecem meio estranhas; a perspectiva também não é lá grandes coisas. Relativizar a importância do realismo do desenho pode ser uma forma de driblar esse problema.
O segundo é relativo às possibilidades do meio. Os pontos fortes e fracos dos quadrinhos e do cinema não são os mesmos. Fazer de uma hq um filme, portanto, é abrir mão dos recursos daquela linguagem em troca… das limitações da segunda.
O exemplo mais claro disso no caso do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é a grade de quadrinhos. De início, conforme deu pra ver no exemplo de Daredevil #158, Miller tenta usar quadrinhos retangulares-horizontais com o objetivo de ser mais cinematográfico.
Com o passar das edições, Miller mantém os quadrinhos retangulares, mas agora na orientação vertical. Em algumas edições [exemplos: Daredevil #172 e 178], quase todos os establishing shots são estreitos e verticais. Com isso, Miller ele reforça a verticalidade da skyline nova-iorquina: ele está transpondo os retângulos que formam a cidade para a página.
É um exemplo de como Miller utiliza a janela através da qual o leitor percebe o mundo em que transcorre a história de uma forma que não está ao alcance de um cineasta.