[Leia a quarta parte do ensaio]
O Homem sem Medo na Era da Reprodutibilidade Técnica
“A reprodutibilidade técnica do trabalho artístico muda
a relação das massas com a arte. A atitude extremamente
reacionária em relação à uma pintura do Picasso se
transforma em uma reação extremamente progressiva
em relação a um filme do Chaplin”.
–Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica
Mas não se engane: o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é um gibi.
Uma parte da série sempre se manteve fiel à sua paternidade noir. Heather, Manolis, Ben Urich, a narração, em primeira pessoa e o narrador pouco confiável, a violência: nada disso ficaria fora de lugar em um livro de Raymond Chandler, Mickey Spillane ou Dashiell Hammett.
Mas eles convivem com outros elementos que foram copiados por Miller de grandes mestres dos quadrinhos. Elektra, a personagem que está no centro da hq, é um deles. Ela foi calcada em Sand Saref, o primeiro grande amor do Spirit de Will Eisner.
É verdade que o próprio Demolidor lembra Spirit: os dois são heróis cujo comportamento é irônica e arrogantemente juvenil. Mas Elektra lembra Sand Saref de uma forma muito mais específica. Como Demolidor e Elektra, Spirit e Sand Saref estavam apaixonados e foram separados pela trágica morte de do pai de Saref. Por conta do crime, ela aversão à polícia [e, consequentemente, à ordem] e, finalmente, uma criminosa. Ela foi criada por Eisner no início dos anos 50. Não é por acaso que Miller a utilizou em sua adaptação de Spirit para o cinema.
Existem diversos outros elementos mais anedóticos que Miller trouxe das hqs de Eisner para o seu Demolidor. O primeiro deles quase que literalmente salta aos olhos: Spirit é a grande influência de Miller para desenhar a página de abertura dos gibis.
Segundo: dá para dizer que o expressionismo do desenho do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson tem nos gibis de Eisner um antecedente. Lembre-se, por exemplo, da chuva no início de Um Contrato com Deus: ela é um dilúvio que evidentemente reflete o estado mental do protagonista da história.
Três: a cidade. Como eu já mencionei lá em cima, já na primeira edição Miller insere o edifício Flatiron em sua história. Alguns outros marcos nova-iorquinos marcam presença, como a Canal Street Bridge e a West Side Elevated Highway [exatamente nessa página aí em cima]. Todos eles tem em comum uma coisa: foram construídos na primeira metade do século passado.
Dessa forma ele parece estar tentando reproduzir as características da Nova Iorque dos gibis de Eisner, cujas histórias tampouco transcorrem na cidade de aço e vidro. Miller, inclusive, faz questão de desenhar alguns detalhes arte-deco para ressaltar o aspecto da cidade.
É possível essa ideia [usar construções da Nova Iorque real] tenha a sua origem no Homem-Aranha de Ross Andru. Essa é uma de suas características:
E Miller era um fã do trabalho de Andru:
A última característica talvez seja a mais surpreendente: o senso de humor. Miller, como Eisner, retrata os nova-iorquinos “normais” de sua história de forma cartunesca, tanto na aparência visual como no comportamento. Eles são moradores típicos, às custas dos quais ele faz algumas piadas afetuosas. Os cinéfilos de Daredevil #169 são um excelente exemplo disso. O meu favorito, no entanto, está em outra página da mesma edição: