A atriz e diretora Letícia Rodrigues foi condenada por injúria racial. Dizia coisas como “olha o carvão” e “quem mandou nascer preto” a colegas de trabalho. A Justiça da Paraíba entendeu que houve crime. Aplicou pena, ainda que em regime aberto. Até aqui, os fatos.
A novidade está na defesa que ela fez de si mesma:
“Como pessoa trans, uma minoria, não poderia cometer esse tipo de crime”.
Isso é revelador. Traduz uma nova teologia política: a identidade como batismo secular. Uma espécie de sacramento negativo, que imuniza o sujeito de toda culpa.
Letícia, por ser “minoria”, estaria moralmente impedida de cometer racismo, isto é, atacar outra minoria. Sua condição a eximiria de responsabilidade, como se tivesse nascido sem máculas. Nem Jean-Jacques Rousseau fora tão longe — afinal, ele acreditava na bondade natural de todos os homens; aqui, a pureza moral é reservada aos eleitos.
Esse é o ponto central da nova moral pública. A militância progressista transformou a identidade em pureza. Não se trata mais de combater preconceitos. Trata-se de hierarquizar vítimas e distribuir indulgências. A vítima certa recebe um salvo-conduto ético. Pode dizer, fazer, agir sem culpa. Obviamente, isso é uma consequência lógica da teoria do “lugar de fala”.
Não se julgam mais ações, julga-se origem social. O que importa não é o que foi dito, feito ou provocado. É quem disse, quem fez, quem agiu. E se quem agiu pertence a um grupo marcado pelo sofrimento histórico, então não ofendeu — reagiu. Mesmo que a reação seja racismo. Mesmo que o alvo também seja vulnerável. A identidade anterior absolve a violência presente e futura.
É uma ética de castas. Cada grupo possui um coeficiente moral próprio. O branco ofende. O negro reage. O hétero oprime. O trans denuncia. O homem cala. A mulher representa. E quem está no topo dessa escada não pode cair em tentação. Está salvo de si mesmo.
Essa inversão do pecado original corrompe a consciência e, portanto, a justiça. A justiça, porque deixa de julgar atos com base na universalidade da lei. A consciência, porque deixa de reconhecer a inclinação humana ao mal moral. O novo moralismo é implacável com os que considera privilegiados e cego com os que considera puros. A ética é uma liturgia política.
Letícia Rodrigues é livre para recorrer. Porém, essa sua defesa é uma tentativa de canonização laica — um esforço de declarar-se moralmente infalível porque, segundo essa nova mentalidade, socialmente oprimida.
Quem achou que a consequência das políticas identitárias seria diferente?