#SingularComMaiúscula
Como dizia Michael Oakeshott, entre um cachimbo e outro, "somos herdeiros de uma conversa iniciada nas cavernas"
Por Rui Pedro Gomes
zarolho sim
mas com um jeito filho da puta
para o decassílabo
(Um Luís Vaz, José Carlos Barros in Taludes Instáveis)
A escola como ringue de batalha ideológica. Mike Tyson de um lado, defendendo as virtudes do pronome neutro nos livros escolares. Jake Paul do outro, aclamando os valores da família e a afinação no hino nacional. Já vi esse pay-per-view de graça, pensará o leitor. Pois eu vejo-o por cabo, aqui na cauda da Europa.
Tudo isso, pelo burgo lusitano, se observa na discussão da disciplina de Educação para a Cidadania, fazem uns anos. Velha discussão noutras bandas. E duas questões: o sexo e as crianças. Tyson, que pensava com o punho, exaltaria que “todos têm boas ideias até levarem um soco na cara”. Talvez, Mike. Olhando para os resultados educacionais dos portugueses, talvez.
Porém deixemos os ringues para quem tem talento com luvas de boxe. O meu ofício sempre foi outro. Para começo de conversa, nasci com jeito para a leitura. O leitor, por sua vez e destino, poderá ter propensão para o bricolage. Eu não; bricolage só nas revistas - longe das mãos, perto da vista. Moral da história: cada um com a sua.
Mateus, um dos doze apóstolos de Cristo, diria: ah, Rui, mas isso é a velha Parábola dos Talentos! Conhece, certo? Responderia que sim: conheço, Mateus. E que, aliás, simpatizo com ela.
É sabido que, na língua do povo, chega em várias versões. Começo: “quem não gosta não come”. Sábio conselho, aplicando-se tanto a ervilhas como a escolhas curriculares de escola. Outra: “cada um é como cada qual”. Mais individualista, sem excesso, tem também a sua utilidade.
Haveria mais, mas chega. Na verdade, chega mesmo: estou exausto de utilitarismo. A ideia de que um currículo deve servir, como uma esfregona serve para a limpeza do chão, cria-me úlceras. O indivíduo não é o chão – ainda que, às tantas, o queiram rebaixar ao seu nível.
Mas adiante: que não se chore pelo leite derramado. Há soluções. Michael Oakeshott, na sua defesa da educação liberal, preferia outra metáfora: a do banquete. Não aquele onde se mastigam ideias como suflés de jantares corporativos, mas a reunião onde cada prato – a filosofia, a matemática, a pintura – mantém o seu sabor distinto, sem se dissolver no molho utilitário do "para que serve?". Aí sim, presta-se serviço.
Primeiro, à pessoa. Ao indivíduo pré-trabalho, hoje mais raro que catatuas. A quem nunca se deve perguntar “o que fazes” antes “do que gostas”. Segundo, à sua autonomia. Homero nunca precisou de preencher folhas de Excel para demonstrar currículo. O pensamento crítico vem antes do manual de instruções. Mais: questiona-o. Como deve ser.
É o segredo: só a liberdade crítica deteta a individualidade. Errando, inclusive. Mateus, o discípulo, aprovaria sem me cobrar nenhum imposto. Na parábola, o senhor elogia o servo que multiplica talentos, não o que os enterra por medo de errar. O que castra é a planificação. É, num alfaiate, moldar o corpo ao fraque, e não o contrário – outra semana em que Millôr Fernandes tem a gentileza de completar as minhas frases. Volto já.
Querem nos fazer crer que o mundo é um IKEA, onde basta seguir diagramas para montar uma vida pronta a usar. Um salário, uma casa, uma família. Esquece-se que as melhores existências – como os melhores banquetes – surgem do risco calculado de misturar Oscar Wilde com fado e física quântica com receitas de avó.
Confesso: ainda tropeço em parafusos e regras de três. Mas aprendi que uma biblioteca bem temperada apazigua mais almas que morfina. Afinal, como dizia o próprio Oakeshott, entre um cachimbo e outro, "somos herdeiros de uma conversa iniciada nas cavernas".
Cabe a nós mantê-la viva – de preferência com Villa-Lobos de fundo e um vinho do Douro à mão. Cada um com a sua.
Oakeshott a lápis, na peça “A Man Without a Plan”, da New Yorker (a revista existia)
Rui Pedro Gomes é um lusitano que põe os acentos circunflexos no Substack que criou há alguns meses.
Logo se vê a preferência por um Fino e não Imperial!!!! Muito ótima a leitura, perfeita combinação.
Uma boa mistura.