#SóAArteSalva(2)
Quando a arte quebra a frieza e a insensibilidade
Primeiro Ato —
Há que se distinguir beleza de perfeição. A arte trabalha a beleza, mesmo quando imperfeita. O movimento parnasiano acreditava que, na poesia, seria possível unir ambos: uma técnica precisa resultaria em ritmo, métrica e sonoridade impecáveis.
A jovem poetisa Francisca Júlia da Silva (1871-1920), aos quatorze anos, já demonstrava sensibilidade singular, a ponto de O Estado de S. Paulo publicar seus poemas.
É de sua lavra Musa Impassível:
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Encantava, com seus versos e sua beleza feminina, a nata paulistana. Tornou-se famosa e conquistou admiradores. Porém, como o amor guarda seus mistérios, apaixonou-se por um sujeito simples: um telegrafista da Central do Brasil. Casaram-se em 1909. Vitimado pela tuberculose, seu marido faleceu em 1920. Desolada, horas após o enterro, ela tirou a própria vida com uma overdose de narcóticos. Seu corpo foi sepultado no Cemitério do Araçá. Morreu antes de completar cinquenta anos.
Segundo Ato —
Entre os admiradores (e apaixonados) de Francisca Júlia destacava-se o deputado Freitas Vale. Na missa de sétimo dia, ele foi incumbido pelo núcleo duro dos primeiros modernistas a cuidar dos arranjos para homenagear a poetisa com um mausoléu. O patrocínio viria dos cofres públicos, e logo se promulgaria uma lei reservando recursos para tal feito.
Foi Washington Luís, enquanto presidente de São Paulo (governador), que encomendou, em viagem à Europa, uma escultura a Victor Brecheret, então residindo em Paris. Brecheret aceitou o desafio. Não cobraria pelos serviços, desde que pudesse esculpir a peça em seu estúdio parisiense; a contrapartida seria o envio de um bloco bruto de mármore de Carrara e a garantia de que a obra chegaria ao Brasil.
Instalada dois anos e meio após a morte da poetisa, na quadra 6-A do Cemitério do Araçá, a escultura Musa Impassível — de 2,80 metros de altura — impõe-se pela beleza pura, plena de detalhes que inspiram admiração silenciosa.
Terceiro Ato —
Quase sete décadas depois, o casal Luiz Fernando Pellegrini e Sandra Brecheret Pellegrini identificou a escultura no cemitério. Como Brecheret havia esculpido a obra no exterior, faltavam à família registros sobre sua produção. Com a ajuda da pesquisadora Márcia Camargos, foi possível confirmar a origem e o contexto histórico da peça.
Sandra, motivada pelo zelo pela memória do pai, ofereceu seus préstimos à prefeitura e ao governo. A solução encontrada foi salomônica: substituir a escultura por uma réplica idêntica, em bronze patinado — resistente ao tempo — que permaneceria no mausoléu, enquanto a obra original encontrava morada (e cuidado) na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Como toda obra de arte que excede em beleza e talento, diante desta escultura, é impossível permanecer impassível. Afinal, a musa centenária inspirou cuidado e admiração, redundando em inciativa que a fez atravessar o tempo e resistir às suas intempéries. Só a arte nos salva.
(a continuar)





Gostei! 👏🏻
“…o amor guarda seus mistérios”…
E eu só aprendendo com o Volney!!