*Por Rodrigo Duarte Garcia
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“a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs”
(Machado de Assis, Dom Casmurro)
Em sua famosa biografia, Lucia Miguel Pereira conta que Machado de Assis foi um molequinho feio, de camisa de riscado e pés no chão, fascinado com o mar. Passava o dia à beira da água, “espiando, curioso, a gente que se aventurava pela Gamboa e as embarcações que atracavam na praia de São Cristóvão”. E nunca soube nadar, de maneira que devia mesmo ficar ali pela praia dos Lázaros e de São Cristóvão, apenas observando de longe a força das ondas, como qualquer criancinha impressionada pela vastidão sublime do mar, naquela mistura de atração, repulsa e temor que Edmund Burke chamou de delight.
Mas Machado de Assis não foi qualquer criancinha. As suas primeiras impressões de menino seriam inevitavelmente o passo inicial para a construção da sua obra extraordinária. E, naturalmente, também aquelas impressões do mar. Porque, se Machado escolheu o Rio de Janeiro como cenário principal de seus livros, e se o oceano é, de fato, a imagem carioca por excelência (o mar ali amplifica a paisagem como pano de fundo da cidade inteira), seria mesmo natural e inevitável que ele acabasse se valendo esteticamente de seus atributos. A geografia jamais condiciona um autor, mas jamais poderia ser de todo desprezada. É exatamente o caso da literatura inglesa. Ou seria coincidência que entre os britânicos – insulares e cercados de água por natureza – estivessem “autores do mar”, como Defoe, Swift, Coleridge, Stevenson, Conrad (o polonês mais inglês que já houve) e, recentemente, o extraordinário Patrick O’Brian?
Embora naturalmente seja besteira chamar Machado de Assis de “escritor do mar”, a verdade é que, ao tratar com recorrência o oceano nos livros que escreveu, ele de alguma forma acabou colocando-se em linha com uma tradição literária gloriosa que remonta a Homero e que tem na imensidão das águas mais profundas um símbolo universal e poderoso para representar os mistérios da existência humana.