#SobreOMalMenor
Sem interesse no maior bem possível e acomodados ao ilusório ‘mal menor’, asseguramos apenas a sobrevivência do mal maior que mantém o país no atraso
Está muito fácil criticar o STF nos últimos anos. Os ministros sabem que dão inúmeros motivos para isso. Por isso, têm investido muito na propaganda, no autoritarismo e na falta de transparência das decisões como modo de autopreservação.
Mas é sempre bom lembrar os momentos em que os ministros se revelaram fortemente comprometidos com a justiça, até para servir de parâmetro de avaliação para os recentes, falaciosos e vaidosos discursos e argumentos.
Lembrar dos raros momentos em que as instituições funcionam bem é uma forma de se evitar, também, a demonização pura e simples da instituição e perceber sua importância para a sociedade.
Geralmente, essa importância fica explícita em situações que envolvem honestidade e coragem por parte de agentes públicos, que eventualmente fazem o seu trabalho de acordo não só com as normas e leis, mas de acordo com um compromisso institucional e, portanto, com a justiça. Isso não devia ser considerado heroísmo, mas como o comportamento é raro, tende a ser apreciado de forma quase transcendental.
Em 22 de abril de 2021, Luís Barroso, ministro que já foi advogado de defesa de Cesare Battisti no passado, afirmou em seu voto sobre a suspeição de Moro:
Quem acompanhou o que aconteceu na Itália conhece o filme da reação da corrupção: a mudança na legislação ou jurisprudência; a demonização de procuradores e juízes; e a tentativa de sequestro da narrativa e de cooptação da imprensa para mudar os fatos e recontar a história. Na Itália, a corrupção venceu e conquistou a impunidade. E, não por acaso, a Itália é, entre os países desenvolvidos, o que apresenta há anos a pior média de crescimento econômico [...]. Mas eu dizia, na Itália, a corrupção conquistou a impunidade, aqui entre nós, ela quer mais, ela quer vingança, quer ir atrás dos procuradores e dos juízes que ousaram enfrentá-la para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil, hoje, nós temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas temos um lote muito pior, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente e gostariam que tudo continuasse como sempre foi. [grifo meu]
No mesmo processo, Marco Aurélio Mello, ministro indicado pelo seu próprio primo, o presidente Collor, também demonstrou institucionalidade em seu voto.
Conclusão diversa implica desconhecer-se os predicados da jurisdição - utilidade e necessidade - e caminhar-se para a execração de magistrado que honrou o Judiciário, que adotou postura reveladora de imensa coragem ao enfrentar corrupção, sendo condenado inúmeros réus, feita colaboração premiada, firmado contrato de leniência, com devolução de bilhões de reais aos cofres públicos. Sim, o juiz Sergio Moro surgiu como verdadeiro herói nacional. E, então, do dia para a noite, ou melhor, passado algum tempo, é tomado como suspeito, e, aí, caminha-se para dar o dito pelo não dito, em retroação incompatível com os interesses maiores do Brasil. Dizer-se que a suspeição está revelada em gravações espúrias é admitir que ato ilícito produza efeitos, valendo notar que a autenticidade das gravações não foi elucidada. De qualquer forma, estaria a envolver diálogos normais, considerados os artífices do Judiciário - o Estado acusador e o Estado julgador -, o que é comum no dia a dia processual. [...] certamente não ganha o Brasil, mas aqueles de quem se ouviu, em passado próximo, que incumbia esvaziar a Operação Lava Jato. O que parecia sonho de adeptos da corrupção desenfreada acabou por realizar-se. [grifo meu]
Ainda que as citações dos dois votos prolonguem o texto mais do que o desejável, são dois breves exemplos fundamentais para perceber as nuances que envolvem o reconhecimento do que é justo como aquilo que, provavelmente, deveria ser prioritário para o país. Diante das imperfeições que dizem respeito, inclusive, às motivações questionáveis para que os ministros fossem indicados ao STF, o voto de ambos revela um comprometimento com a instituição.
As “gravações espúrias” mencionadas pelo juiz Marco Aurélio nunca foram autenticadas e a Polícia Federal concluiu que os hackers pretendiam não só obter os dados de forma ilegal, mas também adulterá-los. Ainda assim, foram amplamente utilizadas para anular toda a operação Lava Jato, não apenas resultando na anistia geral somente de criminosos que assaltaram o Estado, mas também buscando punir aqueles que enfrentaram a grande corrupção.
O impacto mais duradouro, no entanto, está no discurso público. Até hoje, muitos sustentam que a Lava Jato foi corrupta, baseando-se exclusivamente nessas gravações e nas interpretações que brotaram delas – isto é, na aceitação passiva do que a imprensa divulgou, especialmente em um cenário onde o jornalismo de WhatsApp passou a ser exposto de maneira escancarada.
Até mesmo o processo, aberto de ofício pelo juiz Humberto Martins, do STJ, com o evidente propósito de defender seu próprio filho e ameaçar os procuradores, fundamentou-se em notícias plantadas na imprensa que tratavam dessas gravações. No início de 2022, o caso foi arquivado sob a conclusão de que “não se apurou qualquer indício de conduta delitiva que eventualmente pudesse ter sido praticada pelos agentes públicos”.
A Lava Jato foi um momento em que o judiciário mostrou que pode ser funcional – o que não leva o país à perfeição impossível, mas poderia levar a um desenvolvimento possível. A punição aos crimes cometidos por gente poderosa deu, por um curto espaço de tempo, certo vigor à sociedade. Isso poderia ter fortalecido a ideia de que não é preciso derrubar tudo e começar do zero.
No entanto, boa parte da sociedade fez o movimento contrário a isso. Mesmo quem se dizia conservador, estranhamente, passou a ver num sujeito como Bolsonaro uma liderança. Justamente um deputado “de carreira” que, junto com seus filhos, defendia a volta da ditadura e o fuzilamento de um presidente por discordar de sua administração. Um deputado que, como se viu, cometia pequenos delitos, considerados menores do que a escabrosa corrupção revelada pela Lava Jato. Algo que poderia indicar que ele só não participou da grande corrupção por nunca ter recebido o convite, torna-se um simples ‘mal menor’. A distorção moral é sempre o caminho mais fácil.
Assim, usa-se a operação Lava Jato não como parâmetro de bem público, mas como justificativa para um ilusório ‘mal menor’. E, agora, estamos aí, com a somatória do mal maior com o mal menor.
A dificuldade de avaliar moralmente uma questão – especialmente na política – sempre foi debatida. É um dos motivos para, até hoje, recorrermos à Aristóteles. Ele já sabia que a ética era um objetivo quase inalcançável, mas ainda assim acreditava que valia a tentativa. Assim, quem ainda pensa que vale a tentativa, acaba enxergando em Aristóteles algum alento.
Para Aristóteles, o pequenino e distante alvo da ética nunca é o mal, mas o hábito firme de agir virtuosamente. Isso pode soar moralista para nossos ouvidos sensíveis a quaisquer ideias a respeito do bem. Mas, em Aristóteles, trata-se de uma escolha que pode, inclusive, ser treinada: quando a vida oferece muitas situações em que a desonestidade entrega um benefício imediato e, ainda assim, você opta pela honestidade sem hesitação, simplesmente porque nem conseguiria agir de outro modo, significa que você é honesto. Nesse caso, a honestidade passa a fazer parte de você quase como um processo biológico qualquer – você não precisa de esforço ou argumentos para que seu coração ou seu pulmão funcionem. É muito fácil identificar a honestidade, assim como, evidentemente, é muito difícil ser honesto.
Na política, essa forma ideal de conduta é quase impossível. Quando Aristóteles idealizou as virtudes dos homens que deveriam conduzir a política, em nenhum momento ele desconsiderou a realidade. No início da Ética a Nicômaco ele explica que é justamente porque o homem tende prioritariamente ao mal (maior ou menor) que tratar da ética é importante. Assim, ele ofereceu parâmetros para que fosse possível escolher o maior bem possível e não o mal menor. Afinal, se fosse para ficar com o mal, Aristóteles nem se daria ao trabalho de falar sobre ética. É o bem que é raro, que demanda trabalho e esforço. O mal está posto, é fácil, frequente e abundante.
Na Ética é possível perceber, portanto, uma rejeição a qualquer pragmatismo cínico que justifique escolhas ruins como “o que restou”.
A Lava Jato, bem como o Plano Real, podem ser bons exemplos de parâmetros para avaliar quando as concessões às imperfeições humana podem ser necessárias e prudentes dentro das limitações da nossa realidade. São modelos, provas reais de que, mesmo com nossas falhas, há um jeito de escaparmos da ideia de que o país é assim mesmo e não há solução, só se acabar com tudo e começar de novo.
Podemos recorrer novamente a um princípio aristotélico: a superioridade do bem coletivo da pólis, da cidade, em relação a qualquer benefício exclusivamente particular. Tanto o Plano Real quanto a Lava Jato não representaram um “mal menor”, mas sim alternativas que buscaram o maior bem possível, promovendo bens públicos substanciais às instituições e, consequentemente, ao país. Em contraste, os governos petistas, o governo de Bolsonaro e os inquéritos do STF têm se limitado, declaradamente, a oferecer o chamado “mal menor”, que é o principal meio para a defesa de interesses corruptos de um grupo de empresários, políticos e partidos que desejam que tudo continue como sempre foi.
Os desclassificados que hoje pedem a anistia para golpistas são os mesmos que aplaudiram a anistia que o puteiro do STF concedeu aos assaltantes pegos na Lava Jato, entre eles Lula, chefe e guia espiritual da quadrilha do PT. Petistas e Bolsonaristas são vermes da mesma periculosidade.
Viva a Lava Jato..eternamente.