#SobVigilância
Como diria Millôr Fernandes: “a privacidade é um intervalo entre duas vigarices”.
Por Rui Pedro Gomes
Soube que Portugal está em linha com a Europa: o tema da proteção de dados tomou certas mesas de debate. O espaço digital é hoje um Clube de Luta e os governos e as empresas, sem pejo para pugilismo, querem recato. E privacidade. O que todo o mundo, à exceção de homens e mulheres ocidentais, deseja mais que a lotaria.
Por aqui, verdade seja dita, valemo-nos do atraso do costume. A febre dos grupos de WhatsApp está ainda em vias de desenvolvimento. Digamos: em contas portuguesas, antes a Catalunha se torna independente. Ou serei otimista. O populismo, que já graça e sobe paredes lusas, tem-se valido de frases curtas e sons altos. Reencaminhado muitas vezes.
Esqueça a parte das frases curtas, leitor. Sei o que pensa e nada tenho a ver com isso; vídeos vejo poucos. E, reencaminhados muitas vezes, só aqueles que dizem respeito ao novo vocabulário do bebé da família. Já diz o nome, “obrigado” e está à vontade com a câmara. Um ministro em potência.
Mas poupo-me de azedume. O digital deu-me – e dá-me - muito. Pelo ecrã, conheci quem devia. Vi e li também: as lamúrias bêbadas da aba Low Life, da Spectator; as trapalhadas aristocráticas de P. G. Wodehouse; o meu país refletido na prosa de Miguel Esteves Cardoso; os amores tristonhos de Antônio Maria. Teatros e pinturas várias. Afinal, a conta nem é má.
O que não isenta os pixels de culpa. Usados para o mal, como facas, cortam o que não devem. QI, por exemplo. A conversa civilizada. Aceleram o lento – o que deve ser lento. Esta minha humilde missiva para o Não É Imprensa, outro exemplo. Mas adianto: a culpa não morre solteira; o cérebro também deita na cama.
Confortável e recetível a jatos de dopamina, a cabeça adora os shots de vídeos rápidos. Ninhadas de cães no jardim. Um deputado com o rabo ao léu. Até que atende à vontade dos gostos alheios. De querer ser gostado. No final de contas, estar sujeito ao que todos estamos: a imitação.
As paredes, portanto, tanto tudo ouvem como a todos mentem. O aviso de “sorria, está a ser filmado” é a vigarice do século. Ninguém mais lhe liga. Requer, então, adequação aos tempos. Posso? Com licença: “Sorria, você quer ser filmado”.
Porque é verdade: você quer. Sem provas, quem saberia do crime de ser leitor, na receção do dentista? Quem desconfiaria do afeto por arte moderna e do desafeto por arte antiga, sem olhar a narizes e bocas, pelas câmaras dos museus? Como conheceria o vizinho?
Por isso, admita-se: a privacidade nunca passou de um luxo. E, com sinceridade de freira, não muito desejável para a maioria. O que hoje cabe no bolso não é um meio de comunicação: é um psicanalista barato. A cada clique, o algoritmo anota a hesitação e o desejo. Entre um anúncio de fraldas e de lares da terceira idade, alerta-nos para o futuro. Até que culpemos a máquina. Afinal, é mais fácil culpá-la por saber demais do que admitir que trocamos segredos por conveniência. Humano.
Tal como o tema do digital. Há o mal e o bem. O mal nos ataques informáticos e roubos bancários, mas também o bem. Sem esse, não duvide: estaria eu na caminhada das 14h e o leitor no café da manhã da Confeitaria Colombo. Nunca cruzaríamos letras.
E por muito que aprecie o debate, confesso-me cansado. Por tal motivo, mandarei uma última acha à fogueira e fecho a porta. Aqui vai.
A privacidade não é inerente à vida social; é uma invenção burguesa - vendida como virtude primária e troçada por Luis Buñuel em O Charme Discreto da Burguesia, entre jantares interrompidos e pactos de silêncio. Descobriu-se, é claro, que até a intimidade tem preço: não faltam documentários sobre vidas alheias e infâncias expostas em posts patrocinados. Hipocrisia? Não: génio. Transformou-se o direito ao segredo em commodity, como se o dia-a-dia se leiloasse na Sotheby’s.
Nada de novo. Como diria Millôr Fernandes, desse lado do oceano: “a privacidade é um intervalo entre duas vigarices”. Ainda que eu preze por ela e não clique no que não me interessa. Aquilo que, venho a descobrir, me acaba por aparecer passado uns dias, em forma de anúncio ou recomendação.
Já pensei em desistir, mas ainda tenho o meu recato. A privacidade, ainda que temperada, é possível. Coisa que o algoritmo suspeita que acredito. Ainda ontem, foi de uma amável gentileza: lembrou-me que gosto de privacidade e de obras sobre a sociedade do espetáculo. “Não quer uma? Está em desconto…”, terá pensado o inteligente. Sugestões não faltavam.
O danado, presumo, saberá até a planta da minha moradia de cor. Aquela que ainda não tenho.
Rui Pedro Gomes é um lusitano que põe os acentos circunflexos no Substack que criou há alguns meses.
Gosto dos "acentos " que o luso põe.