Eu já escrevi AQUI sobre a esquizofrenia brasileira do “Puxa, como esse comediante gringo é subversivo e por isso é genial” vs “Puxa, como esse comediante brasileiro é subversivo e por isso precisa ser cancelado”. Conforme prometido no texto anterior vou relatar como esse cinismo se estende entre os porteiros brasileiros dos streamings americanos.
Enquanto os 'produtores de conteúdes brasileires’ do Netflix, por exemplo, se orgulham que os gringos David Chappelle e Ricky Gervais são do catálogo da multinacional em que trabalham, fecham a porta na cara de comediantes brasileiros que optam por conteúdos similares em suas premissas e materiais. Na realidade vão além. Fecham qualquer diálogo com comediantes brasileiros que por acaso eles pensem que talvez um dia cheguem perto de abordar alguns temas que a sua religiosidade política-social desaprove. Na realidade vão mais além ainda. Vocês podem ver em seu catálogo de standup o especial do Felipe Neto.
Eu disse isso uma vez durante uma entrevista e hoje fico feliz de ver muita gente repetindo, pelo menos é sinal que está claro como tudo funciona:
“Politicamente Correto nunca foi sobre ‘o que’ não se pode dizer e sim sobre ‘quem’ não pode dizer”
De muitos casos, selecionei apenas três para contar. São histórias reais que eu vivi. Não vou colocar juízo de valor nos relatos. Deixo que vocês tirem as suas próprias conclusões:
Natal sem Polêmicas
Quando o Netflix abriu a plataforma no Brasil eu tratava diretamente com os gringos. Me apresentei para eles. Eram pessoas querendo fazer negócios e entenderam que eu tinha o que precisavam: números altos, audiência grande e engajada, carreira consistente e trabalho relevante.
Fui um dos primeiros brasileiros a ter o standup na plataforma. Tive dois shows alí: ‘Politicamente Incorreto 2010‘ e ‘Danilo Gentili: Volume 1’. Me disseram que os números foram excelentes e queriam que eu fizesse um especial para eles.
Estava negociando meu especial de Standup Comedy Netflix com Los Angeles e, mais do que isso, dois anos antes de qualquer comediante brasileiro fazer algo parecido eu sugeri um especial de Natal na plataforma. Adoraram a ideia. Eu estava em vias de completar o projeto quando me informaram que agora a plataforma teria escritório no Brasil e eu deveria tocar direto com os brasileiros, mas que tudo estava encaminhado.
Quando um ‘brasileire’ assumiu a conversa parei de ser atendido. Eu insisti e recebi a reposta brasileira que me achavam polêmico demais e que não queriam nada relacionado ao Natal por não dar audiência. Eu insisti que não sabiam dizer isso pois nunca fizeram um Especial Brasileiro de Natal na plataforma. Me disseram que não iam me dar um especial de Natal porque não queriam polêmica com o tema Natal. Sequer viram o que eu tinha preparado para apresentar.
Dois anos depois o Porta dos Fundos fez na plataforma um especial de Natal dizendo que Jesus era gay. Foi polêmico. No ano seguinte repetiram a temática e repetiu-se a polêmica. No outro ano fizeram de novo.
Até hoje ninguém de lá me recebeu para ver como seria o meu especial de Natal.
Spoiler: Não tinha polêmica nenhuma. Era apenas um cômico especial de Natal.
Limpinho, mas só para divulgar
Recentemente um “produtore de conteúde” da Amazon me fez um pedido. Ele gostaria que eu entrevistasse alguns comediantes que fizeram com ele alguns especiais da Amazon. Eu expliquei que faria isso com prazer, como sempre faço. O meu programa é sem dúvidas o programa que mais recebe humoristas para divulgar os seus trabalhos. Porém eu disse também que eu tinha uma dúvida. Tendo eu um dos maiores públicos de comédia do País, uma carreira forte, consistente , ainda em alta e, modéstia à parte, ao lado de bons colegas e amigos, sendo uma das principais referências do gênero standup comedy no Brasil, por que a Amazon nunca topou conversar sobre um especial de standup comigo?
Ele disse que era porque eu era polêmico.
Então perguntei por que sendo o meu trabalho inaceitável para a Amazon ele quer usufruir dele para divulgar de graça tais conteúdos da plataforma?
Não sei a resposta até hoje.
Depende de quem escreveu isso
Alguns gringos de um famoso canal americano gostaram do roteiro que eu criei e toparam produzir. Me passaram para os brasileiros que trabalham para eles. Então os problemas começaram. Os roteiros que foram bons os suficientes para passar pelo crivo gringo de repente passaram a ser considerados incorretos quando chegou na portaria brasileira. Eu garanto que nenhum diálogo ou piada escrita alí era mais ácida ou ofensiva do que as que vemos em South Park ou Family Guy, conteúdos que esses mesmos brasileiros se orgulham em transmitir nos canais em que trabalham.
Piadas previamente aprovadas passaram a ser devolvidas com a desculpa que eram pesadas, ofensivas ou que sei lá mais o quê. Perguntei então para a “pessoe” que me barrava : “Quem você admira?”. A resposta foi “irmãos Cohen e Fargo”.
Entreguei o próximo roteiro com um diálogo altamente descritivo sobre fezes armazenadas embaixo de um colchão. Era bem escatológico e fazia questão de passar com detalhes a imagem das fezes humanas esmagadas entre o colchão e a cama.
Obviamente tal ‘pessoe’ reprovou e me explicou como era pobre, pesado e desnecessário tal diálogo. Então eu mandei para ela a minutagem exata da série Fargo onde o personagem de Martin Freeman trava esse diálogo dentro de um carro. Revelei que não foi eu que escrevi aquilo. Foi o autor da sua série preferida.
O projeto morreu.
Você quer ser comediante no Brasil? Não se preocupe em fazer alguém rir, nem em cativar público, nem em cultivar a criatividade e muito menos em conquistar grandes números, prêmios ou notoriedade internacional.
Apenas pague o pedágio.
Você chega lá.
Espetacular, Danilo! Vc está mandando muito bem nos seus textos! Não é surpresa pra mim.
Que ódio que deu ao ler o trecho do Fargo!!!
Continue com esses textos, são super necessários! Estou lendo todos!!
Tem que ficar registrado, não só nos papos de camarim.
Eu me apresentei no “grande canal fechado da comédia” apenas 1 vez, achei que foi legal, funcionou, riram, cortei piadas potencilmente “ofensivas”, fiz minha parte, mas no ano seguinte, ao pedir pra fazer de novo, eu tive que ouvir:
“Não vou conseguir te encaixar esse ano, me exigiram 50% mulheres e dos 50% homens preciso de representatividade preta e Lgbtq”
Infelizmente nasci homem, branco, hétero e “opressor”, mas no meu Comedy Club todo quer fazer! 🤷🏻♂️