A imprensa em peso anunciou que Alexandre de Moraes apresentará hoje, diante de uma banca na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (a famosa “SanFran”), a sua tese para ser o novo professor titular desta nobre instituição.
Todos os veículos, da Folha ao Antagonista, passando pela Gazeta do Povo, fizeram um arrazoado que, na verdade, não passa de um “copia e cola” de press-release. Eles repetiram a mesma coisa: o juiz do STF defende o seu próprio trabalho no TSE, durante as eleições de 2022, critica o tal do “novo populismo digital” e afirma que as redes sociais precisam de regulamentação para salvar a democracia.
Na verdade, ninguém teve a coragem de ler a tese do magistrado. Bem, o NEIM fez este trabalho para você, amado leitor.
Em primeiro lugar, vamos deixar algo claro: Alexandre de Moraes pode legislar o que quiser no âmbito da Constituição e das redes sociais em época de sufrágio universal, mas não pode interferir em algo que se chama rigor acadêmico (apesar da própria academia ser desprovida disso nos últimos tempos). Então, o que está em jogo aqui é a validade do seu argumento e a profundidade de seu conhecimento teórico, jamais a pessoa do juiz do Supremo.
Dito isso, precisamos tirar logo o elefante da sala: a tese de Alexandre de Moraes não é, sob nenhuma hipótese, uma tese, no sentido do gênero acadêmico. É uma dissertação, dividida em uma breve introdução, quatro longos capítulos e uma conclusão bem apressada. E, como dissertação, jamais consegue ser do nível de um mestrado, por exemplo. Está mais para um produto ginasial.
Para uma tese ser uma tese, é necessário ter uma hipótese original e articulada de forma explícita. Moraes não faz nada disso: ele apenas defende o seu trabalho no TSE e ataca as redes sociais como as principais responsáveis pela “corrosão da democracia” e pelo surgimento do “novo populismo digital”. E este argumento também sequer é dele: vem antes da jornalista Patrícia Campos Mello, cujo livro A Máquina do Ódio fez a cabeça da intelligentsia tupinquim durante o governo Bolsonaro (e a própria Campos Mello se aproveitou de outros livros, como Os Engenheiros do Caos, de Giuliano De Empoli).
A fraqueza principal do livro de Campos Mello é que ela não consegue provar como 58 milhões de pessoas que votaram em Jair Bolsonaro na eleição de 2018, presumivelmente influenciados por algoritmos no Facebook e disparos de mensagens em massa via WhatApp, é um número infinitamente superior aos quase 2 milhões que teriam sido atingidos por essa conspiração sórdida (segundo as estimativas da repórter).
Mas este não é o assunto principal de Moraes. Ele está mais interessado em como o ambiente digital mudou a democracia - e de que forma isto afeta a nossa Constituição. Por isso, vestido do seu papel de guardião, o juiz precisa proteger ambas, segundo sua perspectiva iluminada.
Porém, na tese, fica nítido que ele não sabe o mínimo sobre os princípios que regem esse ambiente digital que pretende analisar (e criticar).
O primeiro deslize é quando ele repete ad nauseaum o termo “desinformação”, sem especificar seu significado e de onde ele vem. Para quem não sabe, este termo vem do russo dezinformatsiya e não tem nenhuma relação com o suposto termo em francês desinformation, como os soviéticos tentaram fazer, ao confundir os intelectuais europeus na década de 1950, de acordo com Robert Chandler em seu livro Shadow World.
Por sua vez, a desinformação também não significa má informação, ou seja, o ato de informar errado ou informar mal. É muito mais do que isso: trata-se precisamente de uma ciência, nascida no coração da Rússia czarista e que depois seria desenvolvida com requintes por Lênin e Stálin, na qual a diferença entre informar mal e desinformar é que, no primeiro caso, trata-se de um ato de uma ferramenta oficial de um governo que reconhecemos como tal; já no segundo caso, o que se tem é “uma ferramenta secreta de inteligência, com a finalidade de outorgar uma chancela ocidental, não governamental, a mentiras de governo”, nas palavras de Chandler.
Para sermos justos com Moraes, ele até cita Lênin a respeito da desinformação, especificamente nas páginas 146 a 148 do texto, usando como referência a escritora progressista Michiko Kakutani, mas para depois fazer um paralelo com o ex-estrategista de Donald Trump, Steve Bannon. Porém, é nítido que o juiz não tem o domínio conceitual e histórico de onde surgiu o termo que, presumivelmente, seria central para a confirmação da sua “tese”.
O segundo deslize ocorre quando Moraes se esquece de citar, ao se referir às regulamentações sobre redes sociais (como o Marco Civil da Internet), o princípio da neutralidade da rede (net neutrality), que significa basicamente que a Internet não tem um guardião [gatekeeper]. De acordo com Gerson Rolim, essa neutralidade abrange todos os tópicos relacionados à circulação de informação na Internet, tais como liberdade de expressão, acesso ao conhecimento, copyright ou inovação. Graças a este princípio, todos mantêm a liberdade de acessar e produzir a informação que quiserem. Contudo, tanto do lado das empresas de telecomunicações que controlam a infraestrutura como do lado dos governos nacionais, este “princípio fundador da Internet” estaria ameaçado, já que ambas as organizações pretendem desenvolver modelos de negócios baseados na hierarquia do fluxo de informação, tomando assim o controle da rede. No caso dos governos, o cenário fica ainda menos auspicioso porque eles ameaçam a neutralidade da rede ao procurarem implementar “filtros” para reestabelecer o controle que antes tinham na época da mídia tradicional e descentralizada. Eles só precisam descobrir uma razão retórica para aplicar esses “filtros” - e encontraram tal motivo na expressão “fake news”.
Assim, a “tese” de Alexandre de Moraes é apenas mais um exemplo de retórica para a construção de uma narrativa a qual existe não só para justificar o seu próprio emprego, mas sobretudo para salvar os destroços de um liberalismo utópico cuja única saída para sobreviver é tornar-se completamente iliberal e, por consequência, autoritário, no limiar do totalitarismo.
Os andaimes da narrativa ficam explícitos quando percebemos um pormenor igualmente bizarro, no aspecto bibliográfico, quando Moraes cita à exaustão uma jornalista do New York Times (Michiko Kakutani), em vez de definir com rigor o que seria o tal do “novo populismo digital”. Se ele sabe quem é Christopher Lasch? Esqueça. James Burnham? Tire da lista. Francisco Weffort? Quem seria ele? Chantal Mouffe? WTF? Enfim: o futuro professor titular da SanFran desconhece por completo a literatura clássica sobre o tema do populismo, seja do âmbito da direita ou da esquerda.
Mas, calma, temos Kakutani, que, com seu livro A Morte da Verdade (uma espécie de A Máquina do Ódio para gringo ver), não quer compreender que a democracia só funciona porque se trata de um maravilhoso truque de dissonância cognitiva.
Ao contrário de Patrícia Campos Mello, que é apenas uma repórter com desejo de ser uma Bob Woodward de saias, Kakutani fez fama como resenhista literária no suplemento cultural do jornal New York Times, ora desagradando alguns escritores (Nassim Taleb e Jonathan Franzen), ora louvando outros (Thomas Pynchon e Philip Roth). Em A Morte da Verdade, seu primeiro livro publicado após mais de 34 anos de labuta nas redações de Manhattan, ela cria uma narrativa histórica para explicar a si mesma como os EUA permitiram que Trump vencesse a eleição. A tese principal é que chegamos ao clímax do relativismo moral e epistemológico que contamina o pensamento ocidental nos últimos anos. A verdade objetiva, tal como a conhecíamos, foi deformada e isto afetou todos os estratos culturais da América. Não à toa, o resultado foi nada mais, nada menos que a ascensão de Trump e de uma direita alternativa que põe em risco tudo o que Kakutani acredita ser o fundamento da democracia — o debate sem preconceitos e a liberdade de expressão irrestrita — , justamente porque eles manipulam a realidade conforme seu desejo de poder.
Obviamente, ao se referir à obra da jornalista em suas páginas, Alexandre de Moraes também endossa esse argumento.
Contudo, o choque provocado por esta “morte da verdade”, feito em escala global, foi extremo. Cada parte atingida por ele se viu obrigada a manter o seu respectivo viés de confirmação para garantir a manutenção do seu mundo particular. No fim, o que aconteceu, tanto nos EUA em 2016 como no Brasil em 2018, nunca foi uma mera eleição política, mas sim uma eleição cognitiva — e a casta intelectual teve de manter sua cegueira irracional, não permitindo que o medo contaminasse suas certezas. Foi o que aconteceu com Kakutani (e Patrícia Campos Mello) que, incapaz de admitir sua dissonância cognitiva, se apropriou das críticas feitas anteriormente por ensaístas conservadores (como Roger Kimball e Russell Kirk), para depois de chamá-las de suas, com a maior desfaçatez, sem se importar com a verdade dos fatos e com o medo de passar vergonha aos olhos do leitor honesto.
Como bem analisou Scott Adams (sim, o desenhista) em Ganhar de Virada a respeito das consequências morais desta reviravolta cognitiva:
A democracia é mais uma condição mental que um sistema político. Ela funciona porque achamos que funciona e queremos que funcione. Mas, se fosse removida a alucinação pública de que o eleitor ignorante médio tem a habilidade de prever o futuro, a coisa toda seria desfeita. (…) A ilusão da democracia é tão robusta que podemos simultaneamente saber que ela é absurda e viver nossas vidas como se não fosse. (…) Se as pessoas fossem racionais, elas perceberiam que não têm os poderes psíquicos necessários para distinguir entre um grande candidato a presidente e um candidato ruim.
A “tese” de Xandão é mais uma amostra de que temos alguém que acredita piamente nessa alucinação. Ele tem a certeza de que é o guardião da democracia, mas não passa de uma SuperNanny da internet. Que uma banca examinadora - composta por luminares como Celso Lafer - não perceba os furos em sua argumentação e ameace aprová-la sem ressalvas por causa do poder do candidato, significa também que o douto magistrado já começou a regular o rigor acadêmico. Na avaliação do NEIM, a ordem da nossa comissão julgadora seria reescrever imediatamente o texto ou então procurar um outro assunto sobre o qual o distinto autor tenha verdadeiro domínio do “estado da questão”.
Só a disposição de alguém ler essa "tese" já vale a assinatura do NEIM. Lembrando que o mesmo foi acusado de ter plagiado páginas de outro autor sem fazer a devida citação, quando fez o doutorado. A academia brasileira é uma piada.
Aula.
Cumpriu aqui o papel que a imprensa deveria cumprir e que na academia também não se vê há séculos.
Matou a pau.
Informou e esclareceu
O preço da assinatura é até barato em relação à qualidade do serviço prestado
Parabéns