#[trabalharcansa]: A Geopolítica De Euclides Da Cunha
De como "Os Sertões", ao fundar sobre o episódio estupendo de Canudos a geopoética da nação, salvou a alma do Brasil
Por Gerardo Mello Mourão
Tapuia, celta e grego - foi como Euclides da Cunha se definiu a si mesmo. Não etnicamente, é claro, pois, etnicamente, todo homem se perde no labirinto da raça imemorial. Tapuia, celta e grego - o que se expressa neste tríqueto de aparentes antagonias, é o sentimento do mundo em que se fundou sua geopoética das coisas, dos lugares e das pessoas.
Certa vez, convidado a pronunciar uma conferência para professores da Universidade de Pequim, fui surpreendido, ao final do debate, por um jovem professor chinês, que desejava mostrar-me "um longo poema brasileiro, perturbador e cosmogônico", que encontrara nas prateleiras da biblioteca acadêmica, e que lera, emocionado. Passou-me o livro, na encadernação típica, com sua capa dura forrada de seda azul, o título na última página, com os belos caracteres recortados em linha vertical. Era uma tradução chinesa de "Os Sertões", possivelmente o único exemplar que restava na China, salvo talvez por acaso da fúria bárbara da revolução cultural, que queimou em praça pública quase todos os livros "dos demônios ocidentais", vertidos para a língua mandarim, nos dias da dinastia Ching e nos primeiros anos da república. Euclides escapara das chamas que não pouparam, por exemplo, o único exemplar de um manuscrito com a tradução completa dos Lusíadas, conforme me contava um neto do poeta João de Deus, Conselheiro da Embaixada de Portugal em Pequim, que tentara localizar o precioso original. Não é de estranhar, de resto, o furor biblioclástico da mesma revolução que queimou também as obras de Confúcio, os poemas de Li Po, de Tu Fu - os incomparáveis poetas da dinastia Tang, e as odes da antologia confuciana com que Pound renovaria, neste século, as estruturas da poética ocidental. Os chineses, aliás, sempre queimaram livros, mesmo no esplendor de sua civilização. O imperador Hoang-ti, por exemplo, há mais de mil anos, enciumado pelas glórias de soberanos de outras épocas, consignadas nos livros de história, mandou queimar o famoso "Xu-Qing" - o livro dos Anais, compilado pelo próprio Confúcio, e parte do Pentateuco confuciano. Ao serem lançados às chamas os livros do Mestre, quatrocentos e sessenta letrados jogaram-se também na fogueira, para perecer juntos com o livro venerável. A tradição da queima de livros continua ainda hoje. Só que não há mais letrados para morrerem com eles. Mas isto é outra história.