[Texto publicado originalmente na ]
*Por João Silva
Estreava, em maio de 1944, no Théâtre du Vieux Colombier, a peça Huis Clos [Entre Quatro Paredes], de Jean-Paul Sartre. Encenada em plena Segunda Guerra, a peça atendeu às dificuldades do período, contando apenas com três atores e um cenário, num ato. O seu tema era também propício à época: os três personagens morreram e chegaram ao inferno, porém, a um inferno muito peculiar, em que, às criaturas diabólicas de Bosch ou aos fogosos castigos de Dante, davam lugar quatro simples paredes.
No que quase parece uma piada, uma lésbica (Inèz), uma ninfomaníaca (Estelle) e um covarde (Garcin) entram num quarto. Porém, sucede-se que à comédia se sobrepõe a agonia e o desespero. Cedo percebemos que o covarde precisa da aprovação da lésbica, a lésbica deseja a ninfomaníaca e a ninfomaníaca cobiça o homem. Mesmo depois de confessarem os crimes que os levaram àquele lugar, na esperança de saberem o que esperar uns dos outros, a tortura continua. Esta, porém, não é uma tortura física. Como Garcin conclui, “o inferno são os outros”. Os personagens estão confinados na tirania do Outro. Quando Estelle, perseverando na sua tentativa de seduzir Garcin, tenta esfaquear Inèz, apercebe-se da triste realidade: eles estão mortos e presos para sempre. Nisto, após um prolongado ataque de riso histérico, Garcin finalmente conclui: “Eh bien, continuons ...” (“Bem, então vamos continuar isto...”).
O Inferno (Nem Sempre) São os Outros
A série The Good Place, criada por Michael Schur, parece, a início, inverter a peça sartriana. Em vez de três pessoas que entram no inferno, a série apresenta-nos quatro pessoas que entram no céu, mais precisamente, no “good place” (o lugar bom). Conhecemos Eleanor, que entrou no “good place” pelos seus incontáveis atos altruístas e a sua alma gémea Chidi, um professor de ética; Tahani, uma filantropista e a sua alma gémea Jianyu Li, um monge budista em voto de silêncio. Embora todos tenham sofrido mortes prematuras, as suas exemplares vidas colocaram-nos no topo de um sistema de pontos que recompensa (ou pune) as pessoas na vida após a morte. Michael, o arquiteto deste “good place”, deixa claro que eles fazem parte de uma elite ética, pois só os melhores dos melhores têm a oportunidade de entrar neste lugar.
Porém, Eleanor cedo começa a reparar que há algum tipo de erro. A sua vida na terra foi, na verdade, o exato oposto do que supostamente a teria levado para o “good place”: uma vida de puro egoísmo, sem qualquer apreço pelas pessoas à sua volta. Vendo-se obrigada a admitir tudo isto a Chidi, a única forma que ela tem de continuar no “good place” é tentar aprender ética com ele para, pelo menos, poder fingir ser boa pessoa. Porém, aquilo que eventualmente descobrimos é que, na verdade, não é só Eleanor que está deslocada: o monge budista chama-se Jason, um idiota da Flórida cujos interesses se limitam aos Jacksonville Jaguars e a atirar cocktails moltovs; a filantropia de Tahani mascara a sua obsessão por si mesma, que a impede de perceber porque razão está sequer no “bad place”, à semelhança de Estelle em Huis Clos; e Chidi, na sua busca filosófica por ser ético, tornou-se, antes, em alguém que não conseguia tomar decisão alguma, um covarde, tal como Garcin. Eles estão, na verdade, no “bad place” (“lugar mau”) e, tal como na peça sartriana, este inferno envolve a agonia em que cada um deles tem de viver, torturando-se mutuamente por causa das suas próprias situações.