#[trabalharcansa]: A ordem e o mal
Uma leitura de Boca do Inferno, de Otto Lara Resende
A ordem e o mal, uma leitura de Boca do Inferno, de Otto Lara Resende
Por Alexandre Sartório
No famoso ensaio dedicado a A princesa de Clèves, “A inteligência e o cadafalso”, Albert Camus trata da característica essencial da linhagem clássica do romance francês, do qual o livro de Madame de Lafayette é uma das primeiras e mais brilhantes manifestações: essas obras são o testemunho do poder da inteligência humana, que cria uma ordem que pretende dominar a adversidade e o caos. Os grandes romancistas armam-se de sua inteligência para impor sua vontade, conformar o real e a vida à ideia que cultivam no coração obsessivamente: impõem ao estilo um tom, bem alinhado, límpido, que se conforma perfeitamente a sua ideia fixa (“Grande parte do gênio romanesco francês está nesse esforço esclarecido de dar aos clamores da paixão a ordem de uma linguagem pura”, p. 191). A linguagem desses romances é lapidada ao essencial, ela é clara, clássica; ela expurga arroubos, ornamentos vistosos. A linguagem literária perfeitamente disciplinada corresponde ao mundo literário perfeitamente ordenado, sob o signo da ideia do autor. Sua obsessão é um determinado estilo de vida. Dessa forma, o romance clássico francês é uma escola de arte, de estilo e de vida.
No entanto, há abalos nesse ideal de limpidez clássica. Flaubert, por exemplo, diz em uma de suas célebres cartas que havia nele um conflito entre a clareza da análise e da linguagem realistas e os arroubos românticos, uma linguagem de beleza exuberante, que borbulhavam na sua alma.