*Por Dionisius Amêndola
"Art is the agent best equipped to bring light to the world. That is its purpose."
Nick Cave
Em um dia de primavera de setembro de 2001, o artista plástico Makoto Fujimura voltava para casa de metrô quando o trem parou: um estrondo pavoroso e ensurdecedor provocou ansiedade e horror; naquele momento, ele ainda não sabia disso, uma das torres gêmeas acabara de desabar. O trem recuou até outra estação onde os passageiros pudessem desembarcar em segurança, e ao conseguir sair para a rua, Fujimura olhou para o horizonte onde as torres ficavam localizadas, e agora o nada lá estava – apenas o Ground Zero.
Makoto passaria a entender estes momentos de crise e trauma como graus zeros da existência, sejam estes momentos individuais ou sociais, a morte trágica de um filho, abusos psicológicos ou físicos, o massacre em uma escola, um incêndio numa boate cheia de jovens, um atentado terrorista inimaginável, todos estes são momentos que nos assombram – como indivíduos, como sociedade.
Tais traumas são fonte de misérias, angústias, rancores, ressentimentos e alimentam aquilo que temos de pior. Naquele momento em que tudo ruiu à sua volta, angustiado pela sua família e por seus amigos, por sua comunidade, Fujimura poderia ter mergulhado neste fosso e se entregado à escuridão. Mas ele preferiu enxergar a luz dourada que atravessava as nuvens e os dejetos que cobriam o céu azul daquele dia primaveril.
A pandemia de Covid-19 deixou um rastro de devastação de proporções globais e apocalípticas. O impacto econômico, social, educacional, emocional – e espiritual - ainda irá reverberar por anos, talvez décadas. Para compreendermos este impacto, para aprendermos a lidar com ele, será necessário observar aqueles que estão nas fronteiras, nos limiares entre o concreto e o utópico, entre o real e a fantasia, entre os vivos e os mortos, para buscar respostas adequadas para todo o sofrimento e desolação deste período. Nas palavras e nas obras daqueles que criam e tecem os laços entre as gerações, encontraremos aquilo que pode reparar nossos traumas. É preciso abrir nossos sentidos – e nossa alma - para os artistas da restauração.
Kintsugi é uma palavra japonesa que nasce da união entre kin (ouro) e tsugi (junção), e literalmente significa 'unir com ouro'. A arte do kintsugi é o denominada kintsukuroi – um procedimento de reparo longo e cuidadoso, que acontece em várias etapas ao longo de semanas, até meses. Mas ao contrário da ideia ocidental de reparo, onde se tenta esconder ou apagar os defeitos, o artista do kintsugi não busca esconder as imperfeições ou as ruínas do objeto danificado, mas mostrar como tais imperfeições e ruínas são belas justamente por suas falhas.
A ideia de beleza aqui é marcada pelo espírito do wabi sabi – wabi são objetos desgastados, sabi são superfícies enferrujadas. É a humildade perante os fenômenos naturais e o que sentimos face ao trabalho do tempo e dos homens.
Mais do que vivermos em tempos líquidos ou liminais, vivemos aquilo que Fujimura chama de uma cultura kintsugi – uma cultura ciente de sua ruína, mas que enxerga nela não decadência e niilismo, mas, ao contrário, beleza e redenção. Mas para perceber tal aspecto desta cultura é necessário um tipo especial de artista, que não teme a katabasis, isto é, a descida ao inferno, em que o artista será aquele que entenderá sua posição como portador desta "boa nova", um tipo especial de xamã. E não há experiência xamânica - que envolva êxtase, ritual, delírio, ritmo – mais vigorosa na modernidade do que aquela que encontramos no universo da música pop.
Em suas mais recentes obras tanto a cantora Lana Del Rey como as bandas Depeche Mode e Metallica – três dos artistas/grupos de maior sucesso em seus feudos - inserem a música pop do século XXI no grande fluxo de ressurgimento da experiência religiosa que se inicia nos fins do século XIX e início do XX, como um rio subterrâneo a correr sob uma cultura que perdeu sua centralidade espiritual, e dominada por uma visão secular da experiência humana, onde as elites políticas e intelectuais, especialmente aquelas das sociedades ocidentais, parecem querer cada vez mais se distanciar das instituições e dogmas religiosos que por séculos sustentaram e nutriram essas mesmas sociedades, mas agora são considerados arcaicos, reacionários e antiliberais.
Nos movimentos artísticos que começam a surgir nos anos finais do século XIX, e ganham força após as duas guerras mundiais que marcam o início do século XX, é notável a busca por um caminho espiritual. Escritores, poetas, e músicos buscam uma saída, ou uma luz inspiradora para suas crises, dúvidas, inseguranças, tentações, e sim, há muitos tipos de fé que surgem naquele momento – fé em ideologias, em movimentos sociais, em seitas heréticas, em Igrejas tradicionais –, assim como há muitos estilos e inovações artísticas vibrando e explodindo em inovações, rupturas e criatividade. E tal impulso religioso, tal dinâmica espiritual, está presente em diversas obras de arte modernas e contemporâneas, nos quais visar o sagrado é a intenção no trabalho de vários dos artistas – de Van Gogh aos dadaístas, de Pollock a Abramovich, de T.S.Eliot a Michel Houellebecq.
Tais expressões artísticas sugerem um movimento de ruptura, de arrebatamento, de retificação e avivamento diante do cenário social predominante, e tal movimento apresenta-se de maneiras paradoxais, mas complementares. Como aponta Jean-Luc Blanquart, este retorno ao sagrado supõe uma:
“falha que é preciso corrigir como razão, diante de uma crise; conforme o modelo bíblico, enquanto relação viva com o iniciador da história; evangélica, segundo a qual o convertido é aquele que acolhe o perdão incondicional de Deus; gnóstica e eclética, um eu irredutível a toda norma exógena que pretende decidir seu destino."
(Jean-Luc Blanquart, conf. citado em O rumor dos cortejos, poesia cristã francesa do século XX, de Pablo Simpson)
A citação acima nos remete diretamente aos poetas franceses que são paradigmáticos para tal ressurgimento religioso, ainda mais quando compreendemos que um dos temas centrais desta poesia é a relação entre poesia e música, representada pela imagem recorrente de Orfeu no imaginário poético destes autores, em que há uma articulação entre o humano e o absoluto, da nostalgia e do mistério, e há um deus escondido nesta poesia musical "dividida igualmente entre o esforço de alcançar as forças obscuras do inconsciente e do sagrado e o acesso a essa materialidade do signo, [da] presença simbólica." (Pablo Simpson, O Rumor dos Cortejos, pág. 34)
A música, como dito acima, é o meio pelo qual o mistério e o sagrado, a esperança e a redenção se insinuam e ressurgem nas sociedades contemporâneas; assim, não é surpresa, encontrar em três dos melhores discos lançados no ano passado reflexões sobre nossos traumas, desalentos, sobre as rachaduras por onde a luz penetra, sobre "fé, esperança e carnificina".
Depeche Mode – Memento Mori
"Memento Mori — 'lembre-se de que você deve morrer'. A música realmente sobreviverá a todos nós."
Dave Gaham