#[trabalharcansa]: O absurdo mais destrutivo (2)
Na obra de Rubem Fonseca, a sordidez é a essência do brasileiro que vive no subsolo
[Leia a primeira parte do texto]
por Alexandre Sartório
Os assaltantes do conto que abre a coletânea de Rubem Fonseca, Feliz ano novo, se entregam, regozijando, a esse “absurdo mais destrutivo”.
O conto se passa no Rio de Janeiro e é narrado em primeira pessoa por um dos três rapazes que vivem de assaltos, assassinatos, miséria, drogas, tédio e vulgaridade. A linguagem do conto é ágil: há muitos diálogos e pouca narração ou descrição; não há travessões ou aspas para delimitar as falas – o narrador economiza nos sinais gráficos; as frases são diretas, curtas, sem ornamentos, pura carne viva, dizem o que têm que dizer; e a linguagem é fortemente coloquial: corrida, despudorada, cheia de palavrões, sempre à cata da sordidez dos atos e do ambiente:
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV?, Pereba perguntou.
Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta.
Fonseca justifica o texto: o narrador pôde narrar o episódio porque “tem ginásio”: ele usa ironia, que o amigo intelectualmente mais limitado não entende; ele não acredita em superstições; não usa em casa objetos roubados. O narrador está mergulhado nesse universo de brutalidade, mas constantemente busca se diferenciar dos outros; a certo ponto, diante de um estupro que um colega de profissão (bom, um bandido) executa, ele diz: “só como mulher que eu gosto”; e, em resposta ao comentário do mesmo rapaz de que o prédio do narrador estava “mesmo fudido”, ele diz: “Fudido, mas é na Zona Sul”.