#[trabalharcansa]: O Exôdo Rumo Ao Coração
Nick Cave desejava ser um bálsamo para os nossos tormentos - e conseguiu.
*Por Dionisius Amêndola
“Foi na cruz, foi na cruz, que um dia
Meus pecados castigados em Jesus
Foi na cruz, que um dia…”
Nick Cave
Dos discos mais impressionantes do último ano, Saved! (e seu duplo, Saved! The Index), foi concebido como uma experiência religiosa/estética/musical que registrava o “renascimento” de Kristin Hayter, agora sob a alcunha de Reverend Kristin Michael Hayter (ou pastor Kristin Michael Hayter). Parte do repertório dos discos é de canções tradicionais do universo religioso americano, universo de tendas repletas de fiéis e transe, de pastores em êxtase embriagados glossalalia religiosa, na qual pecadores temem as chamas do inferno e sabem que o capiroto está sempre à espreita. É um disco imerso em uma religiosidade febril e carismática. Hayter não apenas interpreta as canções, ela evangeliza, ela quer nos converter através das canções. E para nos fazer “entrar em sua tenda”, ela usa de artifícios estéticos que criam uma aura, um redemunho de fé a nos puxar para seu centro. Assim, lamentos, preces e hinos foram registrados em um gravador de quatro canais, e editados de forma a dar a impressão de estarmos a ouvir gravações de cem anos atrás - distorções, cortes bruscos, ruídos, criam uma atmosfera de disjunção temporal e assombrologia estética - uma estética que muito lembra aquela que encontramos na sonoridade e nas obras do compositor William Baskinski (Disintegration Loops, Lamentations, The Clocktower At The Beach) e no ideal filosófico/estético japonês wabi sabi.
Para aqueles que frequentam a igreja dylanesca dos apóstolos dos últimos dias, o título do disco da pastora Kristin remete diretamente ao disco homônimo de Bob Dylan, Saved, zênite da fase born again do cantor americano. Para os infiéis, aqui vai um breve comentário sobre este momento da carreira e da vida do bardo americano.
A religiosidade e o imaginário cristão estão presentes no cancioneiro americano em todas as suas vertentes, não apenas no gospel, mas também no blues, no rock, no jazz e no country, etc. Bob Dylan cresceu e se formou como artista imerso nessa cultura - e não é nenhuma aberração interpretar uma de suas primeiras canções de sucesso, Blowin’ in the wind, como uma canção sobre o poder do Espírito Santo. Mas sempre esquivo e mercurial, suas letras eram mais ambíguas liricamente do que aquelas encontradas nos trabalhos de artistas como Johnny Cash ou Elvis Presley. Mas, em 1979, Dylan encontrava-se perdido, e isso o levou aos braços da musicalidade e da religiosidade gospel. Diz a história que, enquanto fazia um show em San Diego, uma pessoa que assistia Dylan jogou uma cruz de prata no palco, e o cantor pegou aquela cruz e colocou no bolso. No dia seguinte ele se sentia amargurado; então pegou a cruz e a colocou no pescoço; novamente, diz a história, Dylan teria sentido a presença de Jesus Cristo. Ele procurou conversar sobre essa experiência com a atriz (e affair) Mary Alice Artes, e ela o levou para conhecer a Vineyard Christian Fellowship, fundada pelo pastor Ken Gulliksen nos anos 70.
É neste contexto que Dylan lança sua trilogia gospel: Slow Train Coming, Saved e Shot of Love - para a incredulidade dos fãs e engulho dos críticos. Discos nos quais Bob Dylan escreve letras que são praticamente sermões sobre tentações, pecados, culpas, sobre o julgamento final e o poder do sangue de Cristo, sobre Deus e o diabo.
O que nos leva a Nick Cave. Ele sempre foi um homem religioso. Não no sentido rasteiro e comumente associado aos carolas que frequentam igrejas e doam o dízimo em nome de uma boa varanda no paraíso, mas no seu significado mais profundo, o do homem que vive a fé com todos os seus tormentos, angústias, comendo a poeira e coberto de cinzas, amargurado e assombrado pela visão do arbusto que arde eternamente em chamas no deserto.