#[trabalharcansa]: O Gênesis Pelo Avesso
O tempo de espera terminou para todos nós em um futuro próximo
"É através do fogo que a Natureza muda."
Mircea Eliade
Quando A Estrada foi publicado em 2006 o livro de Cormac McCarthy foi interpretado por muitos como uma eco-ficção apocalíptica, onde num futuro próximo uma catástrofe ecológica lançou a humanidade numa "não Era". Protagonistas do livro, um homem e seu filho caminham por territórios que outrora eram os Estados Unidos da América na tentativa de chegar a uma região menos afetada pela catástrofe ambiental. Os riscos da jornada são imensos, há o frio, a fome, homens cruéis, canibais. As alegrias, poucas, simples e fugazes.
Aqueles que sobrevivem neste período de encerramento da vida entendem que o passado é algo que se perde a cada dia, a cada novo terremoto, a cada última lata de refrigerante encontrada. O tempo de espera terminou e a única maneira de preservar algo deste passado é não desistir de fazer o bem e a justiça, mesmo – ou principalmente - em um mundo sem futuro.
"Ele abafou a fogueira na fenda de rocha...amarrou a lona atrás deles para refletir o calor e se sentaram aquecidos em seu refúgio enquanto contava histórias para o menino. Velhas histórias de coragem e justiça do modo como se lembrava delas..."
E se neste início da história encontramos o pai a tentar passar algo do sentido do bom e do justo para seu filho, à medida que a narrativa avançar veremos que em momentos críticos o filho será aquele que lembrara o pai da necessidade do bem.
Cormac McCarthy marca com precisão o momento em que o tempo de espera chega ao seu fim:
"Os relógios pararam às 1h17. Um longo clarão e depois uma série de pequenos abalos. Ele se levantou e foi até a janela. O que foi? ela disse. Ele não respondeu. Foi até a o banheiro e ligou o interruptor, mas a energia já se fora. Um brilho opaco e rosado no vidro da janela. Ele caiu sobre um dos joelhos e puxou a alavanca para tampar a banheira e depois abriu as duas torneiras ao máximo. Ela estava de pé junto à porta de camisola, segurando-se no batente, embalando a barriga com uma das mãos. O que foi? ela disse. O que está acontecendo?
Não sei.
Por que você vai tomar banho?
Não vou."
O tempo de espera chegou ao fim, o fogo consumiu toda a terra, um fogo que nunca sabemos de onde começou, o que o causou, podemos especular, mas o que importa é que este fogo resultou em uma terra de cinzas, árida e infértil. Uma terra morta. Escuridão, um sol opaco, mares e lagos apodrecidos, terremotos e, acima de tudo, homens maus habitam o cenário desolado deste "mundo falecido". McCarthy irá buscar nas imagens escatológicas do livro do Apocalipse suas rimas literárias:
"E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue;" - Apocalipse 6:12
"E o primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com sangue, e foram lançados na terra, que foi queimada na sua terça parte; queimou-se a terça parte das árvores, e toda a erva verde foi queimada" - Apocalipse 8:7
"E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço, como a fumaça de uma grande fornalha, e com a fumaça do poço escureceu-se o sol e o ar." - Apocalipse 9:2
Comparem esses trechos com os do romance de McCarthy:
"Do outro lado do vale do rio a estrada atravessava uma região completamente queimada. Troncos de árvores carbonizados e sem galhos estendendo-se de cada lado."
[…]
"Andando pelo solo seco de um mar mineral onde este jazia rachado e partido como um prato que tivesse caído no chão. Trilhas de fogo feroz na areia coagulada."
[…]
"No longo entardecer cinzento eles atravessaram um rio e pararam e olharam da balaustrada de concreto para a água lenta e fosca passando lá embaixo. Esboçado sobre a fuligem pálida lá adiante o contorno de uma cidade queimada como uma tela de papel preta."