*Por Alexandre Sartório
“Somos emissários de Deus com asas!
Prepare-se! Não te esqueceremos!
Estamos de volta para te levar para casa”
Nick Cave
The sick bag song, publicado no Brasil pela editora Terreno Estranho, com tradução de Carlos Messias, é uma encarnação contemporânea do poema épico. Nessa jornada, o sujeito poético, diferentemente de Ulisses, não singra os mares, mas corta as rodovias e os céus da América do Norte, e, da mesma forma que Ulisses, ele é acompanhado por entes sobrenaturais, e tem um único e grande anseio, por baixo da superfície do desejo de colecionar feitos, da ambição humana: voltar para casa. Como no Ulysses, de Joyce, The sick bag song parodia a jornada do Ulisses de Homero, olhando pra baixo, para os atos e sentimentos mais banais ou mais baixos, mesquinhos, do seu protagonista, chegando mesmo ao baixo-ventre do heroísmo: a narrativa de Joyce acompanha Leopold Bloom numa ida matinal ao banheiro, enquanto os versos de Cave o acompanham passando mal, vomitando, vendo as marcas do tempo no espelho de um banheiro de hotel.
Essa jornada de Cave se dá nas estradas da América, mas é sobretudo uma jornada espiritual. Se a Odisseia acompanha os caminhos, de início apartados mas no fim convergentes, de Ulisses e seu filho Telêmaco, em The sick bag, acompanhamos a jornada espiritual de um homem em dois tempos, o poeta Cave no presente narrado, uma turnê na década passada, e Cave quando criança, ambos enfrentando seus medos, fracassos e perdas, em caminhos que também convergem. Como Ulisses chora de saudades de sua Penélope, mesmo na companhia prazerosa de Calipso, Cave refere constantemente a falta que sente da mulher e a angústia de ligar para ela e não ser atendido.
No poema, o menino está parado uma ponte de ferrovia, olhando para baixo, pensando em pular num pequeno espaço de rio entre árvores e uma estrutura de concreto. Ele hesita, e um trem está chegando e vai se juntar ao brilho torturante do sol na tarefa de esmagar o menino até o aniquilamento:
O trem tem uma enorme face amarela. A face inexpressiva não representa nada. (...) Atrás do trem não há nada – nem tempo, nem espaço, nem memória, nem amor. O sol abate, queimando tudo até o nada. O apito grita até sua cabeça estourar. O trem-nada irá engolir o menino.
E o adulto, um cantor em turnê, é acossado por fantasmas do passado (“Sou um sistema nervoso movido a rimas e fantasmas”), pela ‘angústia da influência’ (“Passo meus dias empurrando Elvis Presley, com a barriga para cima, / por uma íngreme encostas” - a influência de Elvis é a pedra que ele tem que empurrar perenemente, como Sísifo), pela sua própria racionalidade realista e irônica, pelo medo do fracasso, do esquecimento, da solidão e da morte: tudo isso se vai acumulando num sick bag, um saco para enjoo da alma, onde borbulham à espera de que se realize o processo alquímico da arte:
Sob o lençol, eu coloco o saco para enjoo no meu ouvido e o agito. Escuto a algazarra típica das nove musas – a tábua para escrever, o pergaminho, a flauta, as flechas de amor, a máscara da tragédia, a harpa, a lira, a máscara da comédia, o globo e um compasso
E é aqui que a transfiguração começa.