#[trabalharcansa]: Rei Lear: vício, dissolução das formas e renascimento
Em Rei Lear, uma volta a uma ordem possível no reino só pode ser alcançada pelo sacrifício, pela renovação profunda.
Rei Lear: vício, dissolução das formas e renascimento
Por Alexandre Sartório
Jüri Järvet como Lear, na adaptação russa de Grigori Mikhailovich Kozintsev
O primeiro motor da tragédia Rei Lear é a decisão de Lear, monarca da Bretanha, de abdicar do peso do poder, mantendo apenas certa pompa, e riqueza suficiente para ele manter uma vida de conforto e segurança, em favor de suas descendentes, que são três, entre as quais dividiria seu reino, a cada uma uma parte proporcional ao amor que demonstrasse ao pai. Suas duas filhas mais velhas adulam-no, e a mais nova, com seu amor sincero e não bajulador; ao se deixar aconselhar pela vaidade, Lear manda embora Cordélia, a filha sincera, dá poder às outras duas filhas – e principia o desequilíbrio do reino. O desvio da virtude quebra a harmonia da ordem: no caso de Lear, com a abdicação; e no caso de outra das importantes figuras do reino, o Conde de Gloucester, que, na juventude, tivera um filho bastardo, Edmund, que, junto com as filhas mais velhas e um dos genros de Lear, busca tomar o poder do reino, ele fundamentalmente por ressentimento, e elas, por ambição e cobiça. O ressentimento de Edmund parece refletir-se no “injured merit” do Satã de Milton; anima ambos a soberba, a revolta humana contra as limitações de sua natureza, contra a condição humana, contra a estrutura da realidade – a revolta contra Deus –, em nome de uma suposta autonomia, fundamental para a concepção antropológica da modernidade.