Quando deixamos de entender o mundo é de fato um livro muito apropriado para os nossos tempos - inclusive na sua forma. De difícil classificação, o livro de Labatut é um misto de ensaio sobre a história da ciência e da modernidade com romance ficcional - e que tipo de ficção? Histórica, científica, de horror cósmico? É um pouco de todas essas coisas. Mas essa dificuldade de classificação, assim como o próprio caráter amorfo, dinâmico e fluido é muito apropriado para os nossos tempos de modernidade líquida (Zygmunt Bauman) - ou hipermodernidade (Gilles Lipovestky), supermodernidade (Marc Augé), modernidade tardia (Ulrich Beck, Anthony Giddens) ou simplesmente pós-modernidade (Fredric Jameson, Linda Hutcheon, Perry Anderson). Não conseguimos nem mesmo classificar o período em que estamos, tamanha a confusão. Eu mesmo prefiro Era Axial, seguindo a terminologia de Karl Jaspers e adotada por antropólogos, filósofos e historiadores que enxergam que a modernidade, como um todo, está presa (stuck) em uma fase liminal, uma transição.
Boa parte do livro de Labatut (justamente aquela intitulada “Quando deixamos de entender o mundo”, que é uma espécie de livro-dentro-do-livro, é dedicada a ficcionalizar a história da descoberta do mundo quântico no começo do século XX. Seus personagens são Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, Albert Einstein, Niels Böhr e Louis-Victor-Pierre-Raymond, sétimo duque De Broglie. Um traço comum a todas essas figuras, nas mãos de Labatut, é que elas quase que enlouqueceram completamente no curso de suas investigações científicas. Na verdade, não fosse pela loucura e seus comportamentos bizarros e aberrantes, dificilmente eles teriam conseguido compreender alguma coisa em primeiro lugar. Esse é justamente o traço mais fascinante do retrato ficcional que Labatut faz: a profunda compreensão do mundo só passa pela loucura - exatamente aquilo que tanto nos assombra nas obras de Lovecraft e Philip K. Dick. Sonhos aterradores, visões proféticas, e o aprendizado de línguas novas - no caso, a matemática de Schrödinger e Heisenberg - aproximam a ciência de ponta do misticismo religioso, e os físicos quânticos de Labatut mais se assemelham aos alquimistas de antigamente do que aos tipos sérios, pacatos, de jaleco branco, preocupadíssimos com seu status social como especialistas e consultores políticos e intelectuais públicos. Ao retomar os esforços desses cientistas - e a loucura que passaram ao descobrir um mundo bizarro e microscópico - os dois livros de Labatut lançados em 2022 no Brasil são nada menos que uma tentativa de investigar a loucura que parece ter caído sobre nós nos últimos anos. Mas e o que isso significa? Labatut aponta caminhos, mas é sábio o suficiente de não tentar responder. Mas é curioso que ele trata da ciência - da hard science, isto é, a física, a química e a língua comum delas, a matemática - para traçar o momento em que deixamos de entender o mundo.
E o curioso é que essa é justamente a preocupação central da obra de Adam Curtis, documentarista inglês da BBC. Com uma obra extensa, que remonta ao início dos anos 80, e compreende mais de trinta filmes, minisséries e curta-metragens, o que mais surpreende quem se depara com a obra do inglês é quão coesa ela é. Curtis aborda temas como sociologia, ciência política, tecnologia, invenções científicas, e história da cultura e do pensamento, para elaborar uma “história emocional da modernidade”. A partir de sua minissérie de 1992, Pandora’s Box, até a sua mais recente, Can’t Get You Out Of My Head (2021), Curtis desenvolveu um estilo único no cinema. E, tal como o próprio romance de Benjamin Labatut, o estilo de Curtis é inclassificável.