No filme O show de Truman (The Truman Show, 1998, de Peter Weir), há um momento em que Truman (Jim Carrey) começa a perceber que seu mundo é estranho. Não simplesmente estranho: ele é falso. As pessoas se comportam de forma ensaiada, como que dirigida num filme; o tempo todo seus passos parecem ser seguidos por alguém. Como que para testar a veracidade de suas observações, o próprio Truman começa a se comportar de forma errática, testando o limite de sua própria realidade. E, num determinado momento, ele consegue vislumbrar uma equipe de cenotécnicos que trabalham atrás de uma parede no lobby do edifício em que trabalha. A cena em si é rápida, mas ela mostra um ambiente de backstage. Até este momento, Truman vinha percebendo, sentindo, que há algo de errado com sua vida e com seu mundo. Ele não sabe dizer exatamente o que é, mas há algo fora do lugar. Nós, espectadores, sabemos o por quê: Truman vive em um mundo artificial, um reality show onde ele é o único que não sabe que vive em um programa de TV (uma variação pós-moderna de Kaspar Hauser, portanto). Mas, se a história fosse contada unicamente do ponto de vista de Truman, a trama certamente se pareceria como a típica história de Philip K. Dick: um protagonista que descobre que vive em um mundo falso, artificial, de papelão (ou uma simulação digital). O que Truman sente é o mesmo que os protagonistas de Dick: inquietação.
Essa inquietação não é exclusiva a Truman ou mesmo a Dick, no entanto. Ela pode ser traçada a H. P. Lovecraft, Thomas Ligotti, Arthur Machen e M.R. James (entre outros): mestres da ficção Weird, cujo principal objetivo, me parece, é o de traduzir uma inquietação em relação ao mundo. Segundo o crítico espanhol David Roas, esse sentimento de inquietação (que também poderíamos chamar de estranhamento) é típico da ficção fantástica: nela, o sobrenatural literalmente ataca o natural ao desestabilizá-lo epistemologicamente:
A transgressão que o fantástico provoca, a ameaça que ele supõe para a estabilidade do nosso mundo, gera inevitavelmente uma impressão aterrorizante tanto nos personagens quanto no leitor. Talvez o termo “medo” seja exagerado, ou confuso, já que não chega a identificar claramente o efeito que, a meu ver, toda narrativa fantástica busca produzir no leitor. Talvez fosse melhor utilizar o termo “inquietude”, uma vez que, ao me referir ao “medo”, evidentemente não estou falando do medo físico ou da intenção de provocar um susto no leitor ao final da história, intenção tão cara ao cinema de terror (e tão difícil de alcançar lendo um texto). Trata-se mais da reação, experimentada tanto pelos personagens (incluo aqui o narrador extradiegético-homodiegético) quanto pelo leitor, diante da possibilidade efetiva do sobrenatural, diante da ideia de que o irreal pode irromper no real (e tudo o que isso significa). Esse é um efeito comum a toda narrativa fantástica. Por isso não é estranho que Freud, em seu artigo “Das Unheimliche”, advirta que o desconhecido inclui já etimologicamente um sentido ameaçador para o ser humano: “A palavra alemã unheimlich é o oposto de heimlich (“íntimo”), heimisch (“doméstico”), vertraut (“familiar”); e pode-se inferir que seja algo aterrorizante porque não é consabido (bekaant) nem familiar. Em sua argumentação ele recorre a outras línguas, buscando a tradução de unheimlich, com resultado similar: locus suspectus (lugar suspeito), intempesta nocte (uma noite sinistra); uncomfortable;, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly, haunted, a repulsive fellow, inquietante, sinistre, lugubre; mal à son aise; sospechoso; de mal aguero, lúgubre, sinistero; em árabe e hebraico, unheimliche coincide com “demoníaco” e “horrendo”.
A ameaça do fantástico: Aproximações teóricas, David Roas. Trad. Julian Fúks. Págs. 58-59.
Todas essas definições para abarcar o incomunicável - mas imediatamente reconhecível - sentimento de “desfamiliarização” (afinal, a tradução mais literal de unheimlich é “desfamiliar”). Gosto da ideia de inquietude, ou mesmo de mal-estar. A própria melancolia, hoje associada a um certo estado depressivo, já foi um termo mais amplo no passado (e essa melancolia de tempos passados é uma condição que afeta, por exemplo, os personagens de Michel Houellebecq - escritor que também foi profundamente influenciado pelo Weird de Lovecraft). E Weird - Estranho - é um nome muito apropriado para esse gênero em particular: uma forma narrativa que fala sobre o nosso estranhamento com o mundo.